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Crítica | Milagre em Milão

por Pedro Roma
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Após a segunda guerra, o cinema italiano passou a necessitar, notoriamente, de uma maior politização, a preocupação com temas que destacassem a pobreza e a penúria do sujeito comum, do trabalhador proletário por assim dizer, é nítida. Um novo realismo, mais social, se fez necessário, afinal se vivia em uma realidade não somente devastada pela guerra mas  que também urgia por uma arte politicamente questionadora: será mesmo o capitalismo resposta as urgências sociais? São as autoridades do Estado democrático corretas? E ainda mais relevante, é justa a democracia burguesa?  Enxergado como um dos principais motivadores da crise nazi-fascista na Europa, o mundo do capital passa a ser criticado. Figuras como a puta, o miserável, o menino de rua, ganham destaque onde a grande estrela não é Greta Garbo, mas a fome.

Diferente das propostas de André Bazin, teórico realista, essa experiência de cinema se aproxima mais da tradição operística, muito popular no país e em saídas fantásticas e melodramáticas do que num imperativo do plano-sequência, romper com o tempo do filme já não era tão importante e mais nobre que registrar o fato quase que sociologicamente verdadeiro é constituir um cinema para o povo, um ladrão de bicicletas pode facilmente conviver no mesmo espaço em que pessoas desapropriadas de suas casas fogem de seus captores voando em vassouras. O assim conhecido Neorrealismo Italiano também rompe com a antiga questão da cinematografia, forma e realidade, como o cachimbo de Maigret, são entendidas como representação, algo que influenciaria a Nouvelle Vague diretamente e mudaria o cinema político. Fica fácil entender Pasolini e Fellini.

Um dos nomes mais importantes desse movimento cinematográfico italiano, o diretor Vittorio de Sica, como muitos desse período, nasceu e vivenciou as turbulências econômicas e sociais da Itália no início dos anos 1900. Dono de uma obra expoente em sua terra, seus filmes refletem esse passado e presente, obras como Ladrões de Bicicleta e Milagre em Milão expressam de forma bem concisa os princípios do movimento, tanto em tema como em narrativa, assim como suas origens teatrais, já que como outros tantos diretores começou no teatro, além de trazer o sujeito comum que ele era, por exemplo seu vício em jogos, para a tela grande, presente na maioria de suas obras.

Milagre em Milão, um de seus filmes mais lembrados, traz muito desse conteúdo em seu desenvolvimento. Lançado em 1951, conta o longa a história de Totò (Francesco Golisano), um menino que após perder a mãe ainda na infância vai morar em um orfanato. Já como homem e tendo de sair de sua antiga moradia enfrenta as durezas do mundo com tudo que esse esquecera: alegria, solidariedade e respeito, quase uma fábula socialista.  Como muitos filmes dessa época sua fotografia é em preto e branco, o que de modo algum a atrapalha. Seu enquadramento é soberbo e junto da montagem hora vagarosa, mas não arrastada; hora rápida, mas não abrupta, imprime um ritmo muito interessante que facilmente envolve o espectador em seu carisma e impressiona pelos movimentos de câmera arrojados, desde tracking shots bem aproveitados para apresentar mudanças em  personagens até tomadas aéreas da ocupação construída por ele que servirá de moradia para ele e seu ”povo”.

O conflito é estabelecido quando o dono da propriedade a vende para um novo proprietário, como latidos de cachorros ambos negociam a vida de dezena de pessoas  em cenas que revelam as pretensões fantasiosas da trama. O roteiro, assinado por seu habitual colaborador Cesare Zavattini, consegue balancear muito bem as sequências de ameaça social com a típica e leve comédia italiana, os elementos melodramáticos não ficam forçados, assim com as piadas de ótimo timing: é preciso também rir das próprias desgraças, afinal. Os tipos criados por esse enredo, mesmo que surgidos na literatura, são sensacionais por isso e, ainda que aparecendo por uns poucos instantes, carregam uma belíssima tragicomédia.

Em seu terceiro ato, o filme se dedica mais á um diálogo entre política e fantasia. Abusando de uma visão popularesca e mística do cristianismo, mais aproximada de um ”amor ao próximo” que ao ”dizimo” por assim dizer. O protagonista ganha uma pomba do fantasma de sua mãe, quase um absurdo. Por isso é muito interessante notar como o tom dado pela direção é aberto a essas possibilidades. De repente, gás lacrimogêneo pode ser assoprado e tiros evitados, uma reintegração de posse se torna fácil de resistir, o sonho, parte imprescindível de viver. Contudo, o desejo não se mostrara tão fácil. É na rápida aspiração para o consumo, de ”milhões” até casacos de pele, que De Sica reflete sobre o aspecto mais dificultoso da justiça social, afinal o ato de querer, mesmo que fabricado e alienado, é a maior força motriz no espírito do homem. Mas o tom de seu final será feliz e não melancólico, percebendo o caos do consumo se encontra no por do sol, algo tão comum que chega a ser extraordinário, algo qual o amor vem de graça.

Lembrado por sua sequência final, em que a classe operária chega ao paraíso da maneira mais lúdica possível, voando em vassouras animadas por um poder divino, essa que é uma das obras-primas do diretor não foi ovacionada em Cannes somente por uma sequencia ou duas. De estrutura impecável, roteiro primoroso e atuações muito carismáticas não há como evitar um sorriso ao vê-lo, sem se deixar cair para o lado panfletário, exagerado ou mesmo bobo é um filme que há mais de 50 anos vale a pena ser revisto.

Milagre em Milão (Miracolo a Milano) — Itália, 1951
Direção: Vittorio De Sica
Roteiro: Cesare Zavattini, Vittorio De Sica, Suso Cecchi D’Amico, Mario Chiari, Adolfo Franci
Elenco: Emma Gramatica, Francesco Golisano, Paolo Stoppa, Guglielmo Barnabò, Brunella Bovo, Anna Carena, Alba Arnova
Duração: 100 min.

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