Home FilmesCríticas Crítica | Minhas Famílias (All in My Family)

Crítica | Minhas Famílias (All in My Family)

por Luiz Santiago
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Historicamente falando, a família é a instituição mais antiga que existe. Sua formação se deu antes mesmo de ter um nome e sua concepção, desde as organizações mais amplas empreendidas pelo homo sapiens, sempre foi muito diversa, com composições, permissões, adições e exclusões que dependiam da cultura do povo e do tempo histórico. Desde o primordial modelo clânico (onde todos, inclusive os agregados, eram a família original) até o modelo nuclear notadamente reafirmado pelos três principais monoteísmos (também chamado de “tradicional” e não raro alinhado a alguns ideais políticos) a família sempre esteve no centro das atenções em qualquer sociedade, e existe um bom motivo para que isso ocorra.

É na família que os primeiros valores de uma pessoa são construídos. E mesmo que com a independência da vida adulta o indivíduo se afaste ou renegue os ensinamentos familiares, adotando um modelo ou ideais de vida completamente diferentes, sempre haverá a marca desse primeiro filtro, das primeiras doutrinas, do primeiro modelo de se ver o mundo, todos produtos do seio familiar. E é com base nessa visão que Hao Wu, cineasta chinês radicado nos Estados Unidos, encontra excelente terreno e resultado final neste seu quarto documentário, intitulado Minhas Famílias.

Sendo um homem abertamente gay, casado e prestes a se tornar pai, Hao Wu encontra-se em um dilema. Sua mãe, irmãos e tia mais velha sabem que ele é gay, mas o avô (que comemora 90 anos quando o filme se inicia) não sabe, e a cada visita de Hao à China, o patriarca cobra uma esposa e filhos do neto. A situação é bastante desagradável, mas em nenhum momento existe uma abordagem de condenação ou olhar negativo por parte do filme para esta questão, que “piora” quando a questão dos bebês entra em cena. O filme é realizado como uma forma de expor as famílias à luz de divergências e concordâncias, trazendo para as pessoas o apoio e o alicerce que necessitam em determinados momentos, mas também sendo limitadora, controladora e opressiva, com base em suas crenças e sonhos para com os descendentes.

Toda a visão moral colocada pelo diretor aqui é forte e presente em todo lugar, dentro e fora de questões ligadas à sexualidade. Não é nada raro que os conflitos de geração (passagem natural em todas as famílias) tragam essa discussão à tona em algum momento. Os filhos querem seguir um caminho, mas esta escolha — ou estrada natural, dependendo do assunto — não é nem de longe aquilo que pais e outros familiares pensaram, prepararam, esperaram. No presente caso, a homossexualidade tem uma camada ainda mais problemática para o clã de Hao, por conta da cultura chinesa menos aberta e muito mais controladora e exigente nas questões ligadas à descendência. É inconcebível, nesse núcleo familiar, que as novas gerações optem por não ter filhos. Ou optem por não se casarem. Ou sejam homossexuais, o que é um horror em si, mesmo que esta pessoa gay se case e queira ter filhos. Como se percebe, é realmente difícil viver e moldar-se para agradar aos mais velhos e realizar os sonhos de todo mundo, menos o seu.

Em  Minhas Famílias, esse dilema é exposto de um modo caloroso. Ele não condena, mas não alivia o preconceito (velado ou explícito). Ele entende as diferenças etárias e culturais, mas não tira de cena o fato de que todos vivemos em uma sociedade, que nossa espécie é uma verdadeira campeã em adaptação e que conversas e exposição da verdade, escolhas e formação de cada um devem ser, no mínimo, respeitadas. E o mais interessante é que isto está aqui em uma via de mão dupla. Ao mesmo tempo em que se sente mal em “voltar para o armário” toda vez que precisa se reunir com a família na China, o diretor resiste bastante em contar sobre sua sexualidade para o avô, mantendo o respeito e uma espécie de limite que, como todos nós sabemos, não é fácil romper.

Embora falte um pouco de fluidez na finalização da obra, o diretor consegue passar com competência e rapidez (são apenas 40 minutos de filme!) uma realidade altamente reconhecível nos laços familiares, com suas palavras duras e declarações de amor. O assunto está pautado pela resistência (principalmente da mãe) ao fato de o diretor ter filhos. Mas há uma doçura muito grande — e Hao modula isso através de entrevistas e cenas de jantares, almoços e outros encontros entre parentes — na forma como posições mais severas e preconceituosas vão se arrefecendo e o amor, no fim, prevalece; uma reflexão que ele traz para a própria vida e a relação com os filhos, já olhando para o futuro.

Nós sabemos que a camada de felicidade e aceitação (com muitas ressalvas) não são o padrão para todos os homossexuais ao redor do mundo — uma boa parte mantém-se expulsos de qualquer convívio familiar — mas a pontada de esperança que este filme nos traz é justamente essa visão do acolhimento, da felicidade e da importância que isto tem para nós, quer venha do nosso lar, quer venha de outras pessoas ao nosso redor. Afinal, família, em conceito sociológico e de vivências, pode ser muita coisa, menos uma composição engessada e que a gente não possa construir à nossa própria maneira, desde que haja amor e proteção acima de qualquer outra possibilidade negativa em jogo.

Minhas Famílias (All in My Family) — EUA, 2019
Direção: Hao Wu
Roteiro: Hao Wu
Duração: 40 min.

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