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Crítica | Mirador (2021)

por Michel Gutwilen
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Na primeira cena de Mirador, o protagonista Maycon, um lutador amador de boxe, se prepara para entrar no ringue. Em seguida, corta para ele já em combate e o momento se desenrola até chegar na pausa técnica, quando então é possível ver seu rosto todo ensanguentado das porradas que levou, além de seu claro esgotamento mental e físico. Trata-se de um flashfoward. Então, surgem os créditos iniciais e o que se vê depois é um plano dele deitado na cama, em um quarto escuro, de costas e de “conchinha” (vulnerável), até que ele finalmente desperta e vai correr na rua. Já ao final do filme, há uma variação da mesma cena só que desta vez, ao invés de mostrar Maycon lutando, uma elipse pula o confronto para um plano dele já sentado na cama, com um band-aid no rosto. Em seguida, a personagem que está morando com ele pergunta sobre seu machucado. “Não dói não?”, sendo respondida com um “tá de boa”, pelo lutador, que então vai correr pela rua novamente.

Dessas duas sequências surge um paralelismo que dá uma característica de circularidade à narrativa de Mirador e simboliza toda a trajetória de seu personagem. Em nenhum dos dois momentos se sabe o resultado da luta, ainda que seja possível presumir que ele perdeu. A questão aqui é que, na verdade, isso não interessa tanto ao diretor Bruno Costa, mas sim como essa luta, enquanto ciclo, é uma representação literal para a rotina do protagonista. Maycon está sempre apanhando da vida, mas dá um jeito de acordar no dia seguinte para tentar novamente, independente da vitória ou não. Mirador é sobre quem é “do corre” do dia-a-dia e dá a cara a tapa, sobre quem apanha e se levanta.

É claro, porém, que entre esses vértices distantes na narrativa, existe toda uma complexa linha que liga eles, com Mirador estando muito longe de ser só a história de superação de um boxeador. Trata-se aqui também da história de um pai e de um homem negro. Obviamente, o grande tema principal e mais visível é o da paternidade (que será pensado mais a frente), mas me parece fundamental olhar com mais atenção para o contexto racial, inserido muito sutilmente na narrativa, menos como texto e mais como subtexto. Crucial a esse aspecto é a narrativa ser muito bem delimitada espacialmente e contextualmente no Brasil: esta é a história de um pai solteiro, pernambucano, negro, que mora em Mirador, no Paraná, região sul do país, majoritariamente branca. 

Dito isso, diversas cenas que em sua primeira camada mostram a rotina de um pai solteiro, também estão implicitamente inseridas dentro de uma leitura racial. Neste sentido, a escolha de elenco é muito bem pensada sob essa lógica. Todos aqueles que Maycon precisa lidar na sua rotina de pai solteiro e estão em uma posição hierarquicamente superior a ele ou são funcionários (personificações) de alguma instituição burocrática são papéis interpretados por atores brancos. Há o seu patrão no restaurante, o treinador no boxe, a médica, a funcionária da creche e por fim a funcionária do Conselho Tutelar. Portanto, em todos esses encontros, que sempre acabam com um estresse para ele, existe também um certo mal estar estrutural no campo imagético, ainda que nem todos ali sejam exatamente figuras maniqueístas, (só o gringo do restaurante), mas que claramente estão inseridos como personificações de um sistema insensível e impessoal que serve para atrasar a vida de quem vive o “corre”. Inclusive, não só é só um estranhamento que se manifesta no contraste entre atores, mas também nos cenários, uma vez que os hospital e da creche são incomodamente higienizados a um nível do artificialismo, contrastando com todo o espaço periférico e real no qual vive Maycon.

Ainda dentro deste contexto racial, é evidente que os seus momentos mais significativos são as idas de Maycon à casa de swing, como forma de complementar sua renda. Não se trata aqui de um posicionamento simplista e “conservador” do filme, no qual se olha para a prostituição enquanto símbolo de vergonha para quem a exerce enquanto profissão, mas sim de pensá-la em uma situação de fetichização e mercantilização da pele negra, vista meramente como carne, desejada e hipersexualizada pela mulher branca que deseja ter relações sexuais com ele. Por este motivo, na cena quase-explícita de sexo em que se vê Maycon servindo aos desejos da mulher branca, sua carga dramática e política fica ainda mais forte, pois se vê no rosto do protagonista toda a humilhação de estar naquela situação de dominação, tanto racial quanto também de classes. 

Aliás, inteligentemente, o diretor Bruno Costa só nos mostra esse tipo de cena uma vez, não caindo no risco de entrar ele mesmo numa fetichização através da hiperexposição da imagem. Ao invés disso, na segunda cena em que Maycon vai à “boate”, há um contraste gerado por uma transição que é mais potente do que qualquer imagem explícita poderia gerar. Primeiramente, vemos Maycon, sem camisa, recebendo dinheiro de uma mulher branca, na cama, logo após o sexo, estando visivelmente desconfortável com a exposição de seu corpo, que naquele contexto é meramente objeto. Em seguida, há um corte para uma tela preta por alguns segundos, como se representasse uma ruptura. Então, corta para ele, novamente sem camisa, mas desta vez em um momento de lazer e inocência com sua filha pequena durante o banho, ressignificando seu corpo e pele, novamente tendo um significado de dignidade, enquanto ser humano e senhor de si mesmo. Em menos de 10 segundos, o mesmo corpo ganha significados completamente opostos através da mise-en-scène.    

Não menos importante, também existe em Mirador uma camada mais frontal, que é a da paternidade. É dentro dessa ótica que Bruno Costa faz seu filme enquanto uma narrativa que quer passar a imagem do que é a vida do trabalhador que é do “corre”. Afinal, é difícil pensar em um momento no qual o protagonista Maycon está realmente parado, relaxando ou até com tempo para brincar com sua filha — o que deixa a cena do banho ainda mais potente, por ser um momento raro. Dentro da narrativa, brincar é como se fosse um luxo. De cena em cena, Maycon vai pulando de trabalho em trabalho e atividades domésticas para cuidar da filha, desdobrando-se em funções o tempo todo. Em muitos momentos, por exemplo, as imagens claramente evidenciam uma certo “abandono” da filha, pois ela está sempre brincando sozinha, enquanto o pai está fazendo algum serviço ao lado dela (como no preparo do feijão), mas o filme se constrói justamente para que Maycon não seja visto como culpado daquela situação, e sim vítima do sistema que vive. 

Por outro lado, contraditoriamente, é curioso pensar que o diretor também faz um certo tipo de paralelismo “moral”, uma vez que nas poucas cenas em que se vê Maycon com a filha no seu horário de guarda, antes da mãe fugir, ele de fato não dá atenção para ela por sua culpa, parecendo alienado e desinteressado, sempre mexendo no celular. Ou seja, seria só depois dele ser obrigado de fato a cuidar da filha, na marra, que ele passa a perceber seu verdadeiro valor. Ora, não é difícil também chegar a conclusão, através das lacunas deixadas propositalmente pela história, que um dos prováveis motivos da fuga da mãe seria o fato de que ela não estava aguentando cuidar da filha sozinha, sem a devida ajuda do pai. Este é um pequeno detalhe que me parece enfraquecer o filme enquanto um recorte verossímil da vida olhada complexamente, indo para o caminho simplista de uma jornada construída enquanto uma “fábula moral”, no qual todos os acontecimentos se subordinam a existir como um recurso narrativo para fazer o pai divorciado negligente ressignificar sua relação de paternidade. Similarmente, o surgimento da personagem da filha do amigo falecido de Maycon parece um ponto solto narrativo, que só existe para ser um lembrete ao protagonista de como seria o futuro da sua filha caso ela tivesse crescido sem a presença de uma figura paterna.

Ao acompanhar a rotina de Maycon, pode-se dizer que essa é uma história que constantemente se submete a um jogo de reinvenções e improvisos, que acompanha o seu protagonista vivendo sempre um dia após o outro, solucionando as dificuldades que surgem no caminho e sempre dando um novo jeito de seguir em frente. Mirador não termina exatamente enquanto o fim daquela história do protagonista e nem com a ideia de que daqui para frente vai dar tudo certo na sua vida, mas é de uma grande sensibilidade que o diretor Bruno Costa decida deixar como última imagem um momento no qual este pai pode brincar e dar atenção para filha, despreocupado com todo o resto ao seu redor. Uma pausa feliz antes de começar o próximo corre.

Mirador — Brasil, 2021
Direção: Bruno Costa
Roteiro: Bruno Costa, William Biagioli
Elenco: Edilson Silva, Maria Luiza da Costa, Stephanie Fernandes, Giovana Soar, Luiz Carlos Pazello.
Duração: 94 mins.

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