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Crítica | Moolaadé

por Luiz Santiago
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Moolaadé foi o canto do cisne do diretor senegalês Ousmane Sembène. Em alguns aspectos (mais sobre isso adiante) a obra se assemelha ao seu longa anterior, Faat Kiné, mas em vez de colocar a força e os enfrentamentos sociais cotidianos de uma mulher na Dacar dos dias modernos, o artista lança o seu olhar para uma vila Bamana em Burkina Faso — o idioma da fita é o bambara, com poucas frases em francês –, dando atenção para um tema muitíssimo relevante e com discussões que formam pautas frequentes em nosso tempo: a mutilação genital feminina e a pedofilia (nesse último caso, para casamentos arranjados entre homens maiores de idade e crianças de 9, 10, 11 anos…).

O roteiro, também escrito pelo diretor, não especifica quando o enredo se passa. A construção da vila lembra uma “cápsula do tempo”, onde a tradição machista e violenta disfarçada de exigência religiosa se vê diante de mudanças trazidas pelas notícias do rádio e pela chegada da televisão, que chega ao local na bagagem do filho do chefe local, retornando da França. A fotografia belissimamente saturada em tons térreos/ocre, além do destaque para o verde e o amarelo, e as inserções de diversas cores nos figurinos femininos reforçam visualmente o tom tradicional que o texto pretende explorar, mostrando um grupo social preso às suas tradições sendo desafiado pelas mudanças dos novos tempos.

Assim como em Faat Kiné e Ceddo, a mulher recebe um papel importante de resistência aqui, assumindo a criação de uma nova ordem, dizendo “basta!” em um momento crítico e necessário para todas. Mas diferente de suas obras anteriores, o diretor faz questão de expor a luta de um grupo, não apenas de uma mulher, contra a violência da mutilação genital. Tudo bem que a voz da resistência é inicialmente levantada por Collé (Fatoumata Coulibaly), mas o senso de irmandade é compartilhado ao longo do filme, em momentos onde essas mulheres são subjugadas de diversas formas.

E o mais interessante é que Sembène não constrói a força de resistência a partir de perfis unilaterais. Tanto mulheres quanto homens possuem personalidades que, em algum momento, estiveram entregues a forças de opressão, e isso vai desde o vendedor que explora o povo da aldeia com os altos preços de seus produtos, mas acaba defendendo Collé do espancamento; até as próprias mulheres divididas entre as que realizam a mutilação (chamada de “purificação” pelos defensores), as que já entregaram as filhas para o procedimento em nome da tradição e as que agora se recusam a entregar mais uma menina ao procedimento que mata muitas delas, além de tornar o ato sexual um verdadeiro martírio para as mutiladas.

Não se trata de um filme fácil de assistir, todavia. As dores infligidas contra as mulheres e os diferentes processos de punição enraivecem o espectador e escancaram mais facilmente a fonte desses tormentos. Os homens mais velhos da vila reúnem-se e decidem o que fazer. Já as mulheres, nada têm a dizer, mesmo sobre assuntos que lhes dizem respeito. No processo de mudanças que a obra recorta para nós, vemos esse levantar da força feminina sendo construído, com o lugar do oprimido lentamente sendo deixado de lado para passar à esfera daqueles que ditam as regras de suas liberdades individuais. O que Sembène quer escancarar, em Moolaadé, é como as ideias de libertação surgem, quais as consequências que trazem para os pioneiros e seus aliados, e o que terminam por alcançar em favor de toda a comunidade.

O próprio nome do filme já é uma escolha sensacional, e reafirma o choque entre tradição vs. modernidade (Faat Kiné também mostrava o mesmo processo, num ambiente urbano e moderno). A palavra significa “proteção mágica”, e refere-se à fita que Collé amarra na entrada de sua ‘vila familiar’ — ela é a segunda esposa de um homem do conselho local –, para impedir que as realizadoras da mutilação entrem ali e levem as meninas. É interessante como esse aspecto místico/religioso é colocado pelo cineasta com uma imensa naturalidade, tendo um papel importante na construção do drama e na mensagem que pretende transmitir.

Ou seja, a questão não é “livrar-se das tradições africanas / do islã“, como os homens mais velhos do conselho afirmam. Mas exterminar todo ato vil e desumano disfarçado de tradição e mandamento religioso. Uma necessidade que dialoga imensamente com o tempo em que vivemos, nos embates entre os que defendem violências diversas contra os outros, seja em nome de Deus, seja em nome de um comportamento ancestral supostamente para “manter a essência“… seja lá do que for. Ousmane Sembène se despede do cinema olhando para a violência ancestral como algo que deve ser superado. Nesse sentido, os novos tempos trazem aquilo que é necessário: após a marcação da moolaadé (a ideia, antes da prática), a necessária partida para a ação e a conquista de um um novo direito. Só se mantém aquilo que não precisa exterminar semelhantes, integral ou parcialmente, a fim de continuar existindo.

Moolaadé (Senegal, Burkina Faso, Marrocos, Tunísia, Camarões, França, 2004)
Direção: Ousmane Sembène
Roetiro: Ousmane Sembène
Elenco: Fatoumata Coulibaly, Maimouna Hélène Diarra, Salimata Traoré, Dominique Zeïda, Mah Compaoré, Aminata Dao, Rasmané Ouédraogo, Ousmane Konaté, Bakaramoto Sanogo, Modibo Sangaré, Joseph Traoré, Théophile Sowié, Habib Dembélé, Gustave Sorgho, Cheick Oumar Maiga
Duração: 124 min.

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