Há filmes que constroem seus horrores a partir de monstros, sombras e ameaças externas, mas existem aqueles, talvez até mais devastadores, que constroem seus horrores a partir do simples ato de existir. Morra, Amor pertence a essa segunda categoria. Não é uma história sobre maternidade, casamento ou vida rural, embora esses elementos estejam todos ali, pulsando e se contorcendo na superfície narrativa. No fundo, o filme é sobre o colapso silencioso e irreversível de uma mulher que não encontra espaço no mundo para caber dentro de si mesma.
A adaptação captura com precisão esse tipo de desespero que não é cinematográfico no sentido tradicional, uma vez que não temos grandes explosões, viradas dramáticas ou revelações chocantes, mas uma erosão lenta, íntima, que vai tomando o rosto, o corpo e a lógica das coisas. Grace, interpretada com uma vulnerabilidade devastadora por Jennifer Lawrence, é uma mulher que está sempre à beira de transbordar. E a grande força do filme é justamente nunca colocar esse transbordamento como espetáculo vazio: ele é vivido desde dentro, como se qualquer pequena fresta da narrativa revelasse mais do que a personagem é capaz de sustentar.
A vida no interior de Montana, tão vendida, nos mitos americanos, como uma promessa de paz, simplicidade e renascimento, surge aqui como uma prisão confortável, quase pastoral, mas claustrofóbica. Não porque o marido seja um monstro, porque a casa seja assombrada ou porque exista algum segredo familiar que ameaça a integridade do casal. A claustrofobia nasce do descompasso: Grace está presa a um cotidiano que não a deseja, a um casamento que não a vê, a um papel materno que não a acolhe, e a um corpo que deixou de ser dela desde que a gravidez passou a ditar todas as expectativas em torno de quem ela deveria ser.
É por isso que as cenas solitárias (e perturbadoras), como ela se masturbando no banheiro, no meio da floresta, entre lençóis, são tão fundamentais. Não são cenas de erotismo, mas de saudade. Saudade da própria vitalidade, saudade do corpo como território vivo, e não como continente de obrigações. Este é um filme sobre desejo num lugar onde desejar é pecado; sobre autocuidado onde cuidar é visto como egoísmo; sobre ser mulher onde ser mulher significa servir até se apagar.
O filme se recusa a patologizar Grace, o que é uma escolha ousada. Mesmo quando a trama a conduz para algum tipo de problema psiquiátrico, a narrativa não confirma que a mesma “está doente”, mas sim que ela não tem linguagem para existir no mundo com o tipo de dor que carrega. A psiquiatra fala em abandono infantil, em carências antigas, numa estrutura emocional fraturada desde cedo, tudo isso verdade, talvez, mas Morra, Amor sabe que explicações racionais não curam feridas que são, antes de tudo, existenciais.
O comportamento errático de Grace, construído a partir de diversas cenas, como andar com facas, a impulsividade sexual, o affair com o motociclista, o jeito brusco com o cachorro, nunca surge como “choque”, mas como a expressão crua de alguém que tentou, realmente tentou, se encaixar no molde que esperam dela… e fracassou. Não por má vontade, mas porque o molde é estreito demais para o que ela sente, ainda que, claro, a personagem caminhe uma linha tênue entre empatia e apatia com a audiência.
A direção de Lynne Ramsay é firme, quase cruel: a encenação frequentemente coloca Grace no centro do quadro, mas deslocada emocionalmente. A câmera não a abraça; a câmera a vigia. É uma escolha formal que traduz, sem diálogos, a sensação dela estar sempre sendo observada, julgada, incapaz de encontrar um lugar onde possa simplesmente existir (os shots mais estáticos dentro da casa são excelentes nesse sentido). É uma direção que opera na fricção entre intimidade e desconforto, um olhar perto demais, que não oferece consolo em seu aspecto frio e emocionalmente distante.
A fotografia faz algo particularmente interessante: em vez de transformar o campo de Montana numa promessa bucólica, absorve mais algo como distanciamento, enfatizando o vazio, o vento constante, a sensação de território amplo demais para alguém tão emocionalmente espremida. Os tons terrosos e os espaços abertos viram extensão da própria apagamento de Grace, da mesma forma que as sequências domésticas passam a sensação de enclausuramento.
Em interiores, tudo é filmado com luz natural, sombras densas e enquadramentos que sufocam. A casa grande, mas não arejada; iluminada, mas nunca calorosa. A fotografia transforma o lar em cenário mental, em que nada é acolhedor, nada é suave. Mesmo o sol, ao bater nas janelas, parece indiferente.
O desenho de som também é fundamental. O filme trabalha com ruídos ambientes ampliados, com vento, passos, rangidos, respirações aceleradas, criando a sensação de paranoia e hiperconsciência que frequentemente acompanha estados depressivos e situações de isolamento como essa. A trilha musical é discreta, quase minimalista, e só aparece quando Grace está à beira do descontrole, não para enfatizar emoção, mas para capturar a alienação crescente dela, como se fosse um som interno, e não externo. É uma trilha mais psicológica do que narrativa.
A montagem é seca, às vezes com longos shots, às vezes cheia de cortes abruptos que espelham o modo como Grace perde o sentido de continuidade. Vemos cenas interrompidas cedo demais, ou longos planos fixos onde o tempo parece não passar. Esse desequilíbrio é intencional, ainda que, claro, tenha seus problemas de ritmo, algo que vejo com olhos menos positivos, também, na construção narrativa meio repetitiva à medida que chegamos na segunda metade da fita.
Talvez esteja até brigando com a proposta, já que a narrativa não busca fluidez; busca fricção. A montagem nos arranca de uma cena para a outra como quem arranca um curativo; cedo demais, doloroso, mas inevitável. É quase um anti-dramatismo onde o drama é todo interno, sutil mesmo em alguns excessos dos personagens, e pouco mastigado ao público, que é compelido a sentir empatia por figuras tóxicas.
Nesse sentido, penso que vale pontuar que Jackson (Robert Pattinson) não é um vilão. O marido é apenas comum demais para compreender alguém que vive num limiar permanente. A forma como rearruma a casa ou tenta trazer novos elementos, como o cachorro, é simbolicamente interessante para determinar que o mesmo vê o problema como desordem externa, quando todo o caos era interno. Acho que Pattinson é até meio subutilizado, talvez porque sua ausência é intrínseca para a construção narrativa, mas o personagem deixa marcas sempre que está em cena, quase como um disruptor que gradualmente se afasta dos instintos mais animalescos da sua esposa (no início do filme) para uma vida doméstica mais comum (ainda que esquisita) que a torna cada vez mais presa.
O desfecho bastante emocional de Morra, Amor revela uma história sobre uma falha ética cruel das relações humanas: a incapacidade de ver verdadeiramente o outro antes que seja tarde. É um retrato pungente de depressão pós-parto, de desintegração conjugal, de mulheres que carregam sozinhas um peso que deveria ser compartilhado e sobre isolamento. Um filme sobre solidão no meio da vida doméstica, sobre erotismo reprimido, sobre a violência cotidiana que ninguém nomeia.
É um filme difícil em diversos sentidos, devastador e profundamente humano. Não nos pede para julgar Grace, mas para acompanhá-la até o limite daquilo que ela consegue suportar. E, no fim, talvez seja esse o maior horror: perceber que a protagonista poderia ter sido salva, se alguém tivesse realmente escutado antes de apenas olhar. Se Morra, Amor é tão devastador emocionalmente, muito disso vem do modo como sua direção e sua concepção estética moldam a subjetividade de Grace. O filme poderia facilmente cair no melodrama ou na caricatura de “mulher à beira de um ataque de nervos”, mas a cineasta entende que o colapso mental não se expressa em explosões, e sim em gestos mínimos, silêncios, e uma câmera que observa mais do que explica.
Morra, Amor (Die My Love) – EUA, 2025
Direção: Lynne Ramsay
Roteiro: Enda Walsh, Lynne Ramsay, Alice Birch (baseado no livro Die My Love, de Ariana Harwicz)
Elenco: Jennifer Lawrence, Robert Pattinson, LaKeith Stanfield, Nick Nolte, Sissy Spacek
Duração: 119 min.
