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Crítica | Morte no Nilo (2022)

Indo longe demais por amor.

por Luiz Santiago
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É necessário ter um pouco de paciência e de boa vontade para gostar da proposta de Kenneth Branagh ao adaptar Hercule Poirot para as telonas. Em sua versão para o personagem, o diretor procura apresentar um detetive com um destacado lado pessoal, uma demonstração mais intensa de pensamentos e sentimentos e uma intervenção mais humana diante do caso em questão, algo que vemos na raiz das duas obras (até o momento) escolhidas para adaptar: Assassinato no Expresso do Oriente e Morte no Nilo. Nas duas versões, Branagh modificou personagens, alterou caminhos narrativos e até mesmo a ordem ou a características de eventos importantes no original. No presente caso, as mudanças operaram num sentido duplo: algumas parecem ter sido uma escolha interessante, apesar de nos causar uma certa estranheza a princípio; enquanto outras simplesmente descaracterizam a obra, tirando o peso e a essência que deveriam ter uma determinada cena.

Algo que já tínhamos visto de maneira menos intensa em Expresso do Oriente e que se mostra em toda a sua estranha glória aqui em Death on the Nile é a abordagem conceitualmente anacrônica que a produção faz do caso. Diegeticamente, estamos em 1937 (ano de publicação do livro, aliás). Os excelentes figurinos não mentem sobre isso, assim como o desenho de produção da obra, que faz ótimas recriações do momento em que a trama deveria se passar. Esteticamente, o filme é coerente e, em uma palavra, lindo. A fotografia, assinada por Haris Zambarloukos (em sua oitava parceria com o diretor), é harmônica, quente, e os filtros são majoritariamente bem utilizados, com poucas exceções em cenas noturnas e no esperado choque entre as cenas de computação gráfica, que são muitas e não necessariamente elogiáveis. Esses elementos visuais estão em par com o que se imagina de uma história ambientada no Egito, na segunda metade dos anos 1930. O impasse está no roteiro. É aí que reside o conceito anacrônico que eu citei no começo do parágrafo.

SPOILERS!

Michael Green escreve como se estivesse abordando um suspense dos anos 2000, com personagens se comportando de uma maneira que parece deslocada e, pior ainda, bem distante da essência do livro de Agatha Christie, o que é um problema para o filme. Como sabemos, as adaptações podem seguir dois caminhos em termos de orquestração geral do texto. O primeiro deles é a opção pela fidelidade. Nessas adaptações, as mudanças são poucas e, na maioria das vezes, procura-se manter a alma do original (embora existam adaptações que são factualmente fiéis à sua fonte, mas não conseguem adaptar aquilo que dá identidade à obra. Nesses casos, a fidelidade não serve para nada).

Já o segundo caminho é o das mudanças, e elas podem acontecer das mais diferentes formas e com as mais diversas intensidades. Normalmente muito criticadas por espectadores que não entendem a diferença entre as palavras adaptação e transliteração, essas ambientações podem gerar coisas incríveis se as mudanças forem coerentes com o Universo e, mais importante, se conseguirem manter aquilo que caracteriza o original. É claro que também existem obras que fazem mudanças, mas parecem que estão adaptando algo completamente diferente — às vezes nem é possível chamar de “livre adaptação“, de tão irreconhecível que fica. Em outros casos, ainda, as mudanças estão na tela para servir a uma visão estilística e narrativa que não tem a ver com o original, mas que busca casar-se com ele. Este é o tipo de adaptação que Kenneth Branagh faz das obras de Agatha Christie. E nessa empreitada, ele é apenas parcialmente vitorioso.

O comportamento geral dos personagens e a troca de gênero, etnia e importância na fita é o grande ponto de destaque. As mulheres, por exemplo, estão muito mais ativas, colocam-se mais frontalmente diante do perigo e de ameaças à sua honra e dizem aberta e claramente aquilo que querem. Esta, porém, é a cara de uma obra de nossa Era. E por mais que alguém argumente o óbvio, que “a arte é um espelho de seu tempo“, não podemos nos esquecer que isso não é uma condição estilística sem a qual uma representação artística não existiria. Não é isso que essa frase significa. Primeiro porque a fonte estabelece determinados comportamentos com um propósito muito claro. Ao alterar isso, o roteiro muda inteiramente a dinâmica de grupo, e o resultado é uma sopa borderline: em algumas cenas, os personagens são tal e qual deveriam ser em uma sociedade que fala de empoderamento, igualdade de direitos e coisas assim… mas em outras, os mesmos personagens parecem se dar conta de que são indivíduos de 1937 e brevemente passam a agir de acordo; algo que acontece com todo o elenco ao longo do filme.

Convenhamos: “sorte” não foi a palavra que marcou a pós-produção e a distribuição de Morte no Nilo. Falamos inicialmente dos adiamentos causados pela pandemia, depois do cancelamento de Gal Gadot (por “problematização de contexto” feita pelos internautas ao lerem a mensagem da atriz sobre o conflito Israel-Palestina), de Letitia Wright (por ser fervorosamente antivacina) e principalmente de Armie Hammer (acusado de assédio, estupro e de expor fantasias com canibalismo para diversas parceiras, pedindo para elas retirarem as costelas, em um médico, para que ele pudesse defumá-las e comê-las). Ou seja, tudo o que pode fazer uma obra ter problemas em seu marketing e até mesmo em sua finalização aconteceu aqui. De repente, o personagem de Armie Hammer desaparece de cena e só volta mesmo no final, porque é necessário. Claramente ele teve muitas cenas cortadas, o que impacta para um personagem tão importante. Para efeito de comparação, basta pegar o livro como base, ou a adaptação cinematográfica de 1978 e a adaptação televisiva de 2004.

Certas escolhas de continuidade aqui são bastante estranhas para um filme com propósito investigativo. A interminável cena de dança no início (que seria interessante em qualquer outro tipo de filme) é uma delas. Já o assassinato de Bouc (Tom Bateman) é problemático, mas não por ele ser a vítima no lugar de uma mulher, como no original (me lembrou o que fez a série Bates Motel, não permitindo que Marion fosse assassinada no chuveiro, como em Psicose, mas que um personagem masculino acabasse no lugar). O problema é que Bouc — personagem que nem é dos livros e de quem eu não gosto desde o filme anterior — está inteiramente deslocado. Em termos de presença, ele substitui o Tim Allerton do original, mas em termos de função na história, ele “substitui” o Coronel Race. Isso faz com que a trama perca uma pessoa muito importante e ainda abre espaço para uma vergonhosa invenção do roteiro ao final, que fala da contratação de Poirot para investigar Rosalie Otterbourne, personagem que Letitia Wright deixa quase insuportável.

À parte a ausência de química entre os três lados do triângulo amoroso, há pelo menos um charme individual entre esses personagens, que funcionam muito melhor isolados. É o caso de Gal Gadot, por exemplo. No início, sua construção para Linnet Ridgeway é completamente errada, mas aos poucos ela parece adequar bem a personagem à sua rasa capacidade dramatúrgica, de modo que fica interessante quanto mais se aproxima de sua morte. O exorcizado Armie Hammer tem poucos momentos dignos de nota e, para mim, é o maior erro de escalação em todo o filme. Já o Poirot de Kenneth Branagh é o único personagem que mantém coerência constante dentro desse Universo. Eu detesto o fato de ele ter raspado o bigode no final do filme, mas por pior que isso seja, sabemos que faz parte de algo plantado desde o início da fita. E sim, esta também é uma parte que não deveria existir na obra. Ela não tem nada a ver com o livro e não traz nada de bom ou relevante para o enredo. Mas está aqui e faz parte de uma completude temática sobre o amor, abrindo e fechando o filme como se estivesse indicando um ciclo.

Morte no Nilo é um filme que fica em cima da corda da qualidade. Visualmente é uma obra aplaudível. Narrativamente tem suas qualidades e bons momentos, mas eles são interrompidos por escolhas questionáveis do diretor e do roteirista, especialmente na seara das mudanças incoerentes em relação ao original. É uma obra de identidade sólida e com um elenco formado por bons atores e atrizes, mas nem todo mundo tem bom aproveitamento cênico (vide Annette Bening). O diretor ainda perde bastante tempo com coisas banais na primeira parte, tirando tempo do processo investigativo que, a rigor, quase não existe aqui. Gosto da preparação para a revelação do crime e devo dizer que a atuação de Branagh na icônica sequência de exposição do assassino é primorosa. É uma pena que ele tenha utilizado a obra de Agatha Christie para inventar uma “origem de Poirot“. Sei que alguns espectadores adoraram essa abordagem, mas para mim, a obra sairia muito melhor sem ela. A discussão central, no entanto, fica no ar. E mais uma vez o crime passional e algumas falas sobre “fazer qualquer coisa por amor” estão entre as justificativas ou explicações para derramamento de sangue.

Morte no Nilo (Death on the Nile) — Reino Unido, EUA, 2022
Direção: Kenneth Branagh
Roteiro: Michael Green (baseado na obra de Agatha Christie)
Elenco: Kenneth Branagh, Emma Mackey, Armie Hammer, Gal Gadot, Tom Bateman, Annette Bening, Rose Leslie, Ali Fazal, Jennifer Saunders, Dawn French, Russell Brand, Sid Sagar, Rhiannon Clements, Sarah Eve, Francis Lovehall, Stacy Abalogun, Susannah Fielding, Rick Warden, Letitia Wright, Sophie Okonedo
Duração: 127 min.

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