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Crítica | Morte Sobre o Nilo (1978)

Tragédia no Egito.

por Luiz Santiago
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O grande sucesso de Assassinato no Expresso do Oriente (1974) fez com que a EMI Films assumisse mais uma produção com grande elenco e locações históricas a fim de adaptar outra querida obra de Agatha Christie para as telonas. O livro escolhido para essa empreitada (demarcando uma iniciativa que se tornaria franquia, com mais cinco filmes pela frente) foi Morte no Nilo (1937), obra da Rainha do Crime com uma ambientação diferente e um enredo sangrento, trágico e de final inesperado. Entregue ao diretor John Guillermin — que vinha de dois longas bastante populares: Inferno na Torre e King Kong –, Death on the Nile teve uma produção relativamente tranquila, apesar de cansativa, com o grande elenco lidando muito bem com o diretor e entre si, a despeito do enorme calor e das sete semanas que filmagens que tiveram no Egito, sendo quatro delas no barco onde a maior parte da história se passa.

A EMI Films procurou escalar Albert Finney para repetir o papel de Hercule Poirot, mas o ator recusou a proposta porque não se via passando, no enorme calor egípcio, pelo longo processo de maquiagem para compor o personagem, algo que ele já tinha odiado fazer em condições climáticas muitíssimo amenas em Orient Express. A escolha seguinte do estúdio, porém, não deixou a desejar. O ator que daria vida ao famoso detetive belga em Morte no Nilo seria Peter Ustinov, que na década anterior ganhara duas vezes o Oscar de ator coadjuvante, uma por Spartacus (1960) e outra por Topkapi (1964). Como Poirot, Ustinov entregou uma performance menos séria/rabugenta que a de Finney, inserindo um pouco mais de ironia, cinismo e humor ácido na maneira de se expressar (confesso que me lembrou mais Padre Brown do que Poirot), de fazer observações e de interrogar as pessoas. É um Poirot mais leve e que me agradou bastante, pois o ator mantém a necessária postura séria quando necessário, assumindo o orgulho e a forma bastante objetiva de lidar com uma crise.

As duas primeiras coisas que o espectador observa com atenção aqui são a fantástica fotografia quente de Jack Cardiff (grande profissional britânico responsável por obras tão diferentes em exigência estética como Guerra e Paz, Os Sapatinhos Vermelhos e Sob o Signo de Capricórnio) e a trilha sonora romântica, aventuresca e levemente sombria de Nino Rota, compositor italiano bastante conhecido por sua longa parceria com Federico Fellini e por ter concebido a inesquecível trilha de O Poderoso Chefão. Com os olhos e os ouvidos imediatamente impactados pela excelência desses setores técnicos, notamos que John Guillermin procurou manter a necessária proximidade com a forma como o livro introduz os personagens antes de dar início à viagem ao Egito. Linnet Ridgeway (Lois Chiles) é retratada como alguém que desperta sentimentos mistos nas pessoas. Sua face aparentemente conciliadora e feliz rapidamente muda, assim como o seu tom de voz, toda vez que quer reafirmar autoridade ou exigir que algo aconteça.

A adaptação de Anthony Shaffer é bastante fiel ao livro na captura de sua essência, e o diretor reforça a atmosfera de hostilidade ou mesmo de tensão esperada em torno de Linnet, de modo que quando chega o segundo e mais longo bloco dramático do longa, os sorrisos e as promessas de uma “boa viagem” pelo Nilo simplesmente não nos convencem. Sabemos que não será uma boa viagem, sabemos o quanto de sangue está para verter e o tipo de problema que está para vir à tona. É aqui que a direção mantém a bela dinâmica visual de “preparação de viagem“. Todo o processo para a partida do vapor Karnak procura se assemelhar àquilo que Sidney Lumet fizera antes de o famoso Expresso do Oriente sair da plataforma. Todos os personagens centrais ganham o mínimo de espaço para brilhar e rapidamente conseguimos destacar a chata e ao mesmo tempo cativante Jacqueline De Bellefort (Mia Farrow, numa interpretação muito boa), a implacável Mrs. Van Schuyler (Bette Davis basicamente sendo ela mesma, o que é maravilhoso) e a absolutamente hilária Mrs. Salome Otterbourne (Angela Lansbury, em uma interpretação impagável da escritora voluptuosa).

O aproveitamento das locações é outro ponto que captura o olhar do espectador. A vista para as pirâmides, a visita dos templos de Abu-Simbel (especialmente o maior deles, dedicado a Rá-Harakhty, Ptá e Ámon), a movimentação da câmera, a captura dos personagens passeando por entre aquelas colunas gigantescas e o clima de tensão criado antes de a rocha ser deslocada de cima de uma das colunas é um dos grandes momentos da fita, que faz jus ao caráter turístico que Agatha Christie colocou em seu livro. Dessa forma, quando as coisas estranhas começam a acontecer, o espectador já tem todo o preparo possível para brincar de adivinhar reações e esperar como a obra irá mostrar os assassinatos. Embora eu não goste muito de algumas cenas de contexto e ache que o diretor faz Poirot perder tempo demais com banalidades, vejo o processo de criação do suspense nesse filme algo aplaudível, criando um fértil terreno para o terceiro ato, onde a violência entra em cena.

Os flashbacks e a integração deles com o método de investigação de Poirot são utilizados nos momentos certos e sem exageros de duração, dando a oportunidade de o espectador ver algumas cenas principais a partir de um outro ponto de vista. Na literatura isso é feito de modo mais tranquilo com a troca de um capítulo, de um parágrafo ou até mesmo de um período. No cinema, é necessário ter cuidado para que esse olhar mantenha o nosso interesse e tragam algo de novo para o andamento da história. O cineasta sabia disso, e tornou cada um desses olhares uma interessante peça de acusação, sempre seguida de um assassinado mais brutal que o outro, algo bem típico de obras europeias dos anos 1970 que tinham um trato bastante particular para com a violência, olhando todo o refino visual que esse tipo de abordagem tinha no giallo italiano.

Do elenco, o único ator de quem não gosto é Simon MacCorkindale, que interpreta Simon Doyle. Sua presença aqui faz sentido dentro daquilo que conhecemos da descrição do personagem, pois é um ator bonito, com um rosto marcante e uma presença que chama a atenção. Mas não consegui gostar da interpretação de MacCorkindale ao longo da obra, mesmo não achando que ele estrague os momentos em que aparece. Só o vejo bastante aquém do restante do elenco, onde todo mundo está fantástico, principalmente da segunda metade da obra para frente. Tenso, cheio de boas surpresas, humor ácido e ironias refinadas de uma classe social cheia de máscaras e podridão, Morte no Nilo nos traz um final implacável, mostrando que em determinadas situações, só alguém muito corajoso e muito insano para encontrar uma saída mortal após perder a tétrica e grande aposta de uma vida.

Morte Sobre o Nilo (Death on the Nile) — Reino Unido, 1978
Direção: John Guillermin
Roteiro: Anthony Shaffer (baseado na obra de Agatha Christie)
Elenco: Peter Ustinov, Jane Birkin, Lois Chiles, Bette Davis, Mia Farrow, Jon Finch, Olivia Hussey, I.S. Johar, George Kennedy, Angela Lansbury, Simon MacCorkindale, David Niven, Maggie Smith, Jack Warden, Harry Andrews, Sam Wanamaker, François Guillaume, Barbara Hicks, Celia Imrie, Saeed Jaffrey, Reg Lye, Andrew Manson
Duração: 140 min.

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