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Crítica | Mouchette, a Virgem Possuída

O pessimismo de Bresson.

por Kevin Rick
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Antes de abordar o filme em si, gostaria de falar sobre o péssimo subtítulo dado pelas traduções brasileiras ao oitavo longa-metragem de Robert Bresson, no original intitulado apenas como Mouchette. Um dos retratos mais marcantes do desespero humano na Sétima Arte, o longa acompanha a personagem-titular, interpretada por Nadine Nortier, uma garota solitária que passa seus dias em desolação em uma vila rural francesa, sofrendo com o abandono de seu pai, a doença de sua mãe e uma comunidade que a maltrata diariamente. É uma obra sobre infância interrompida, desesperança social e inocência corrompida. Então, eu nem consigo colocar em palavras o mal gosto e a revoltante escolha pelas palavras “virgem possuída” para caracterizar a narrativa tragicamente bela de Bresson.

Dito isso, podemos mergulhar na análise da obra. Como disse, Mouchette segue a história da protagonista que dá nome ao filme, laconicamente demonstrando a vida atribulada de uma pobre camponesa numa série de situações adversas. Nos estágios iniciais da obra, vemos um pássaro sendo preso por um caçador, enquanto a audiência testemunha a ineficaz tentativa de fuga do animal. A longa sequência é uma metáfora apropriada para o destino inevitável de Mouchette, uma jovem criada pela crueldade de um microcosmo que não demonstra brechas para liberdade ou felicidade. Nos poucos momentos de prazer da personagem, Bresson coloca Nardine em tela de maneira constrangedora e distante, como se ela não soubesse reagir à bondade. Chega a ser emblemático como o principal momento de infantilidade de Mouchette se dá na “violência” de um bate-bate – rapidamente seguido por uma situação agressiva.

Isso porque, na maior parte do tempo, Mouchette é negligenciada por seu pai violento, lida com a humilhação da professora e de colegas e ainda por cima tem árduas tarefas domésticas para cuidar da mãe moribunda e do irmão bebezinho. É um ambiente hostil, um retrato de dor desprovido de empatia no seu entorno para que a audiência possa adentrar na experiência de compaixão e identificação com a tragédia de Mouchette. Em um momento repugnante do filme, a jovem é estuprada por um cidadão do vilarejo, mas nessa situação traumática, a reação de Mouchette é… abraçá-lo. Em um mundo terrível, um ato hediondo é recebido pela personagem como um toque corporal honesto que ela desconhece. Completamente perturbador, não?

Bresson continua sua visão metódica de buscar firmeza na simplicidade de cortes e enquadramentos, com muitas elipses e planos estáticos, a ausência de trilha sonora e diálogo que aumentam o vazio depressivo do longa e desempenham nosso papel como espectador ativo para retirar significado da imagem e de sons ambientes; e um aperfeiçoamento magnífico no uso de “modelos” (seus atores amadores) para ações e não performances com identidade própria – tudo é sobre universalização do ato e das metáforas, e não necessariamente sobre seus personagens, que cada vez mais se assemelham a um elemento técnico para contar a história imageticamente.

No entanto, em termos de filosofia e significados da mise-en-scène, Mouchette soa como uma transição de abordagem de crenças do cineasta francês. O filme lembra a estrutura e o enredo de A Grande Testemunha (1966), em uma espécie de metáfora leve da Via Crúcis, que é o trajeto de dor de Jesus até o Calvário, com o burro Balthazar no filme de 66 e aqui Mouchette como representações inocentes do caminho penoso entre a maldade do ser humano. A diferença está no comportamento durante o trajeto, pois se Jesus é uma figura divina que atravessou a dor pela remissão de nossos pecados e Balthazar é um animal que aceita a situação por ignorância (um retrato estoico de uma vida intolerável), Mouchette está sujeita a ser corrompida. Ela se torna melancólica e odeia essas pessoas, chegando a atacar colegas de classe. Em dado momento da fita, uma mulher diz o seguinte para a garota: “você tem maldade nos olhos”.

É a visão pessimista de Bresson. Até uma dissolução momentânea do diretor com sua fé e espiritualidade, se me permitem essa interpretação mais ousada. No retrato de uma sociedade rural imoral, o diretor nos carrega pela tragédia da pureza se tornando corrupta. Em meio ao egoísmo, indiferença, onipresença da toxicidade masculina, alcoolismo e a desumanidade, Mouchette é um anjo desvirtuado pelo ambiente sem santidade. Nada encapsula mais isto que o desfecho anticlimático. A protagonista assiste um coelho sendo morto pelo mesmo caçador que aprisionou o pássaro, realizando que não existe fuga da sua realidade. Então, ela se suicida em meio a uma brincadeira de barranco. Uma criança buscando o divertimento na aflição mesmo em seus momentos finais de uma vida interrompida.

Mouchette, a Virgem Possuída (Mouchette) – França, 1967
Direção: Robert Bresson
Roteiro: Robert Bresson (baseado no romance Mouchette, de Georges Bernanos
Elenco: Nadine Nortier, Jean-Claude Guilbert, Marie Cardinal, Paul Hebert
Duração: 81 min.

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