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Crítica | Mr. Mercedes- 1ª Temporada

por Rafael Lima
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Quem conhece o trabalho de Stephen King, ou está familiarizado com as adaptações de sua obra; sabe o quanto a luta entre o bem e o mal é um tema recorrente dos escritos do autor. Mr. Mercedes, série baseada no romance homônimo de King, estreou em 2017 no canal Audience trazendo esse conflito dicotômico clássico inserido dentro de uma narrativa policial sem os típicos elementos sobrenaturais geralmente associados ao autor, mas com a interessante provocação sobre a co-dependência dos dois lados desta batalha. Mr. Mercedes tem como ponto de partida um crime brutal, onde um maníaco dirigindo um Mercedes roubado atropela um grupo de pessoas que esperava a abertura de uma feira de empregos, deixando dezesseis mortos e ferindo dezenas. Dois anos depois, o assassino batizado pela mídia como “Mr. Mercedes” nunca foi encontrado, e o detetive responsável pelo caso, Bill Hodges (Brendan Gleeson) está aposentado, assombrado pelo crime que não conseguiu resolver. Mas ao começar a receber emails provocadores do assassino, Bill sai da apatia em que mergulhou para levar o maníaco à justiça, custe o que custar.

Comandada por David E. Kelley, a série, ao longo dos dez episódios desta 1ª temporada, está mais preocupada em estabelecer os paralelos e diferenças entre Hodges e o vilão Brady Hartsfield (Harry Treadaway) do que no jogo de gato e rato que se estabelece entre eles. Quando a trama efetivamente começa, após o chocante prólogo que mostra o massacre da feira de empregos (filmado de forma crua por Jack Bender, que dirige a maioria dos episódios), encontramos Bill e Brady vivendo existências morosas e rotineiras que parece destruí-los. O ex-policial passa os dias bebendo e assistindo TV, enquanto Brady está preso em um trabalho frustrante em uma loja de eletrônicos — e em uma relação incestuosa com a mãe alcoólatra Deborah (Kelly Lynch) com quem mora. Os únicos momentos em que Brady se sente vivo é quando está em seu porão com seus computadores ou disfarçado de sorveteiro para espreitar os seus inimigos. É irônico, portanto, que ao tentar conduzir Hodges ao suicídio com as suas provocações virtuais, como havia feito com a dona do Mercedes, Olivia (Ann Cusack), Brady acaba justamente demovendo o detetive da ideia.

O conflito dá o sopro de vida que esses dois homens precisavam, mas a forma como interagem com aqueles à sua volta é o que define a real natureza dos dois protagonistas, já que ambos partem de arquétipos que são humanizados por seus coadjuvantes. Entre estes coadjuvantes estão Ida Silver (Holland Taylor), a sábia e charmosa vizinha de Bill, Jerome Robinson (Jharrel Jerome), um jovem hacker amador que corta a grama de Bill para completar a renda e que acaba envolvido na investigação e Janey Patterson (Mary-Louise Parker), irmã de Olivia, que contrata Hodges como detetive particular e acaba se envolvendo com ele. Destaco ainda as personagens que se tornaram as favoritas dos fãs (e grandes ladras de cena), Holly Gibney (Justine Lupe), uma jovem autista e sobrinha de Janey, que tem importância vital na caça ao Mr. Mercedes, e com quem o detetive desenvolve uma relação paternal, e Lou Linklater (Breeda Wool), a sarcástica colega de trabalho de Brady, que sofre constantes ataques homofóbicos e é a pessoa mais próxima que o psicopata tem de uma amiga.

Claro, de nada adiantaria ótimos coadjuvantes se não tivéssemos dois bons atores nos papéis principais, mas felizmente, Gleeson e Treadaway são perfeitos como Hodges e Brady. Gleeson dá á Bill Hodges a aspereza e mau humor típicos de um homem que sente que seu tempo passou, embora à medida em que a trama avança, ele revele um lado mais tenro e gentil do detetive, que começa a se abrir mais para as pessoas ao seu redor, mas ainda mantendo um certo ar ranzinza que é o grande charme do personagem. Treadaway, por sua vez (substituindo o falecido Anton Yelchin), consegue fazer com que o público veja Brady Hartsfield não apenas como um maníaco homicida raso, ao explorar as fragilidades e contradições da personalidade do vilão, especialmente no que diz respeito à sua dinâmica de domínio/dominação com a mãe. Percebemos em alguns momentos que Brady até tenta lutar contra a sua psicose, o que leva inclusive a algumas sequências de humor ácido hilárias, como aquela onde o rapaz imagina matar todos os presentes em um almoço de negócios. Mas embora humanize o seu vilão, os roteiros nunca permitem que esqueçamos a sua real natureza monstruosa e mesquinha, o que é apoiado pela atuação de Treadaway, que só retrata Brady realmente à vontade quando este dá vazão aos seus piores impulsos, que destroem e deformam qualquer sentimento positivo que possa ter..

A trilha sonora é um verdadeiro personagem dentro de Mr. Mercedes, com Punk Rock, Jazz e Blues. A seleção musical não só é excelente, como também ilustra de forma perfeita os vários momentos dramáticos vividos por seus personagens, como It’s Not Too Late, de T-Bone Burnett, que toca na abertura e conversa com os principais conflitos de Bill Hodges na temporada, ou Hi Ho Nobody’s Home de David Baerwald, que destaca um momento de grande transformação para o vilão. Por ser uma série conduzida muito mais por seus personagens do que pela própria trama, Mr. Mercedes não tem pressa de estabelecer os seus conflitos, construindo com calma os pontos de virada da narrativa (especialmente em seus 5 primeiros episódios), o que pode desagradar os mais impacientes. Ainda que a série compense a falta de ação com um bom desenvolvimento psicológico de seus personagens, não se pode negar a existência de uma pequena barriga em sua primeira etapa, já que personagens como Holly, por exemplo, poderia ter sido introduzidos um pouco mais cedo para dar um pouco mais de credibilidade à sua relação com Bill (que ainda assim, é muito bem construída). A metade final da temporada já é um pouco mais acelerada, ao intensificar o jogo de gato e rato entre Hodges e Brady e tornar este conflito mais pessoal à medida em que os corpos começam a se acumular, dando o tempo necessário para que os personagens possam reagir e absorver a morte de outros, montando o palco para o ato final.

Mr. Mercedes entrega uma 1ª Temporada sólida, que ao apresentar um protagonista bastante humano — conquistando a nossa torcida — e um vilão sinistro e carismático, aposta na dinâmica quase simbiótica entre os dois, que só conseguem ser a melhor (e pior) versão de si mesmos devido ao conflito que travam. Contando com bons roteiros, uma direção segura que trabalha com competência a tensão psicológica da narrativa e suas passagens muitas vezes macabras; uma trilha sonora brilhante, um elenco coadjuvante afiado e protagonistas com total domínio sobre os seus personagens, a estreia da série de David E. Kelley é uma das grandes adaptações de Stephen King. Sendo Mr. Mercedes o primeiro livro de uma trilogia, não foi surpresa que a temporada se encerre deixando ganchos potenciais para temporadas futuras, que com a boa recepção da série não só aconteceriam, como também permitiriam aos criadores tomarem maiores liberdades com o material original. Mas essa é outra história.

Mr. Mercedes- 1ª Temporada – EUA, 09 de Agosto de 2017 a 11 de Outubro de 2017.
Criadores: David E. Kelley e Jack Bender
Showrunner: David E. Kelley
Direção: Jack Bender, John Coles, Laura Innes, Kevin Hooks
Roteiros: David E. Kelley, A.M Holmes, Dennis Lehane, Bryan Goluboff (Baseados em romance de Stephen King)
Elenco: Brendan Gleeson, Harry Treadaway, Kelly Lynch, Jharrel Jerome, Scott Lawrence, Robert Stanton, Breeda Wool, Justine Lupe, Mary Louise Parker, Holland Taylor, Ann Cusack, Katharine Houghton, Nancy Travis, Maddie Hasson
Duração: 10 episódios de aproximadamente 50 Min.

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