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Crítica | Mudo (2018)

por Ritter Fan
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Não se pode dizer que o Netflix não é insistente. Apesar de a empresa de streaming ter rapidamente se consolidado com uma gigante das séries de TV, tanto as efetivamente produzidas por ela quanto as que são apenas adquiridas para distribuição exclusiva, o mesmo não se pode dizer sobre seu lado voltado aos longas cinematográficos. Mesmo considerando grandes acertos como Beasts of No Nation e Mudbound: Lágrimas sobre o Mississipi, obras como Quando Nos Conhecemos, The Cloverfield Paradox, O Rei da PolcaFútil e Inútil e a grande aposta no gênero da fantasia Bright, só para ficar nas mais recentes, não exatamente conseguiram reverter o quadro de escolhas não mais do que medianas do canal.

Mudo, sinto dizer, reafirma a tendência, mesmo considerando que se trata de um filme de Duncan Jones, promissor diretor e roteirista que debutou em longas em 2009 com o ótimo e cultuado Lunar, seguido do também muito bom Contra o Tempo em 2011 e da infelizmente desapontadora adaptação do famoso jogo online Warcraft, em 2016. Mas Jones tinha – e ainda tem, sejamos sinceros – crédito e Mudo era uma obra esperada com alguma ansiedade, especialmente porque, segundo o próprio, ela se passaria no mesmo universo de Lunar, como uma espécie de “parte 2” de seu filme até agora mais bem-sucedido criticamente.

E, de fato, ele cumpriu o prometido. Sem revelar nada, seu novo longa efetivamente compartilha o universo que começou a criar com seu filme de estreia, ainda que a conexão seja completamente inócua para o roteiro, funcionando muito mais como um mero easter-egg do tipo “olha lá, que legal” do que qualquer outra coisa. Pelo menos não é algo intrusivo que desvie a narrativa de seu foco.

Ou, pelo menos, do que parece ser seu foco.

Afinal, ao longo de mais de duas horas, se há uma coisa que Mudo não tem é exatamente isso: foco. Para começar, o design de produção faz um esforço gigantesco para colocar na tela uma versão carregada de CGI do futuro distópico cyberpunk de Blade Runner. E não afirmo isso de forma lisonjeira como fiz em Altered Carbon, pois, se lá havia uma organicidade estético-narrativa que pedia esse visual noir futurista, aqui ela existe porque sim, porque é possível, porque Jones quer e porque ele deve ter decidido que o espectador precisava de distrações visuais para a bomba narrativa que ele soltaria. O submundo de Berlim em 30 ou 40 anos é praticamente um pastiche da obra seminal de Ridley Scott, mas sem abraçar esse lado completamente satírico como O Quinto Elemento de Luc Besson faz. O resultado é algo que fica ali no meio, tentando dar sabor genuíno ao macarrão semipronto de Jones, mas não conseguindo ser mais do que um daqueles pacotinhos de “pó de gosto” que se junta à gororoba insossa. E isso porque nem mesmo estou entrando no mérito da qualidade do CGI – séries de TV têm trabalhos melhores nesse quesito – já que é evidente que assegurar o financiamento desse sonho molhado de neon do diretor não deve ter sido fácil.

Em termos de história, somos apresentados a Leo (Alexander Skarsgård), um barman amish (?!?) de um inferninho que é mudo em razão de um acidente aquático quando criança. Silencioso, mas talentoso em desenho e marcenaria, ele namora Naadirah (Seyneb Saleh), garçonete de cabelo azul que trabalha na mesma boate e cujo desaparecimento repentino serve de catalisador para a ação. Leo, desorientado e tendo que lidar com suas restrições à tecnologia que são também representadas por sua restrição vocal, sai desesperado em busca de Naadirah em uma forma enviesada e mal acabada de se emular o trabalho de detetives particulares em obras noir clássicas como as de Dashiell Hammett ou Raymond Chandler. Paralelamente e a princípio sem conexão alguma, o roteiro lida com Cactus Bill (Paul Rudd) e Duck (Justin Theroux), dois cirurgiões que trabalham para a máfia local, com o primeiro querendo desesperadamente voltar para os EUA com sua filha pequena.

A história, por mais simples que possa ser, não é o maior problema narrativo. É aquela velha sucessão de clichês que, se bem trabalhados, poderiam gerar filmes interessantes. No entanto, este não é, definitivamente, o caso de Mudo. Ainda que o desaparecimento de Naadirah aconteça com razoável velocidade, a progressão narrativa a partir desse ponto é injustificavelmente lenta. A incapacidade de Leo de se adequar ao mundo em que vive há mais de 30 anos é o que salta primeiro aos olhos. Afinal, é evidente logo de início que Naadirah não está com ele há tanto tempo assim e ele teve que viver boa parte de sua vida sozinho por ali em meio à Berlim disfarçada de Los Angeles de Blade Runner. Sim, ele é amish e sim, ele é mudo, mas a vida continua e sua demora em se adaptar ao novo status quo não convence. Ao fundo, Jones tenta inserir suas críticas sociais, açoitando o “imperialimo” americano e os conflitos entre imigrantes, mas tudo fica… digamos… emudecido e perdido em um roteiro que não sabe explorar essas questões de maneiras mais relevantes do que salpicá-las aqui e ali quase que como uma obrigação.

As interrupções na história principal para o roteiro lidar com a caricata e irritante dupla de cirurgiões são, porém, os maiores pontos de desgaste. Mesmo que haja a inevitável convergência ao final, a grande verdade é que substancial parte das sequências com Cactus Bill e Duck poderiam ter ficado no chão da sala de montagem sem que a história perdesse sequer um milionésimo de sentido. Aliás, ao contrário, ela ganharia mais sentido e, principalmente, mais celeridade, fazendo com que Leo chegasse do ponto A ao ponto B – que nem tão distantes são um do outro – sem precisar quicar por diversos cenários diferentes em chroma key e sets de novela. Como se isso não bastasse, Rudd, normalmente engraçado e Theroux, um bom ator, estão completamente perdidos em um roteiro que pede o pior possível deles: caretas, linguagem corporal de teatro Kabuki e toda a sutileza do proverbial elefante em uma loja de louças.

Skarsgård, por outro lado, ganha um papel que, com trocadilho, não diz absolutamente nada. No máximo ficam gritantes as limitações dramáticas do ator que tem dificuldade de expressar qualquer sentimento sem se debulhar em lágrimas falsas ou parecer uma criança pirracenta perdida no shopping center. A mudeza de Leo é, apenas, uma desculpa para a criação artificial de um personagem estoico e sorumbático que emula o home durão e caladão clichê do subgênero, mas que acaba sendo mais uma paródia do que algo que soe genuíno ou que tenha peso narrativo.

Mas nem tudo é imprestável. Mesmo que seja mais do que evidente que toda a inusitada construção do personagem de Leo exista única e exclusivamente para permitir a execução da sequência na ponte (não falarei mais do que isso), confesso que fiquei genuinamente surpreso pela inclemência dos 20 ou 25 minutos que a antecedem. Jones e seu co-roteirista Michael Robert Johnson não fazem muitas concessões e mantêm-se razoavelmente fieis à atmosfera pseudo-sombria da fita, ainda que as mudanças de pontos-de-vista não façam muito sentido dramático. É, aliás, na crueza que testemunhamos nesses momentos finais que vislumbramos com facilidade o Duncan Jones que esperávamos ao longo de toda a projeção. É uma pena que ele só realmente dê as caras com o leite quase que completamente derramado.

Mudo é mais um representante do que talvez já possa ser chamado de “padrão Netflix” para longas próprios ou de distribuição exclusiva: algo que mostra potencial, mas que o joga fora já nos primeiros minutos de projeção, sem jamais recuperar o que foi desperdiçado. Desfocado, longo demais, visualmente pobre e com um roteiro desinteressante, o mais novo filme de Duncan Jones desaponta em quase todos os níveis.

Mudo (Mute, Reino Unido/Alemanha – 23 de fevereiro de 2018)
Direção: Duncan Jones
Roteiro: Michael Robert Johnson, Duncan Jones
Elenco: Alexander Skarsgård, Paul Rudd, Justin Theroux, Seyneb Saleh, Nikki Lamborn, Ulf Hermann, Florence Kasumba, Gilbert Owuor, Daniel Fathers, Noel Clarke, Robert Sheehan, Sam Rockwell, Anja Karmanski, Robert Kazinsky
Duração: 126 min.

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