Quando, em 2000, a Marvel Comics criou o Universo Ultimate para contar histórias de seus heróis sem o peso da continuidade, ainda não havia a moda do multiverso nos quadrinhos. Sim, vários universos paralelos ao principal existiam, mas aquela sana por inventar e explorar realidades alternativas ainda era consideravelmente tímido se compararmos com o que aconteceria nos últimos 15 anos talvez. Portanto, o Universo Absolute, que é a “resposta” (bem) tardia da DC Comics para o que a Marvel fez e que vem ironicamente depois até do que a segunda versão do Universo Ultimate, não pode se contentar com paralelizações leves, que replicam o que já é conhecido com apenas algumas poucas alterações aqui e ali. Faz-se necessário algo mais chamativo, como dar o físico do Bane ao Batman e tirar todo o dinheiro de Bruce Wayne, ou fazer do Superman alguém que efetivamente viu a destruição de Krypton e que, na Terra, é ajudado por uma inteligência artificial em seu traje multiuso.
Nos casos do Absolute Batman e do Absolute Superman, as alterações vieram, serviram de eficientes instrumentos de marketing, mas, se formos espremer mesmo, os personagens são fundamentalmente iguais às suas contrapartidas “oficiais”. No primeiro encadernado de Absolute Mulher-Maravilha, que reúne os dois primeiros arcos de sua história, o primeiro com cinco edições e o segundo – não mais do que um epílogo – com apenas duas, percebe-se que Kelly Thompson, no roteiro, teve a coragem de ir além do que Scott Snyder e Jason Aaron foram ao lidar com o Cruzado Encapuzado e com o Azulão, transformando a Amazona em mais do que uma princesa guerreira da paradisíaca ilha Themyscira e promovendo alterações mais profundas nela do que vimos nos dois demais heróis que formam a trindade da DC, mas, claro, respeitando a arquitetura formativa original da personagem.
A Mulher-Maravilha de Thompson ainda é uma amazona, em princípio a última como o título do encadernado deixa claro, que efetivamente nasceu na Ilha Paraíso, mas que, na reimaginação do Universo Absoluto, foi levada bebê por Hermes até a Ilha Selvagem, no Inferno, para ser criada por ninguém menos do que a feiticeira Circe, presa ali para sempre, o que transforma uma das maiores inimigas da personagem da continuidade normal da DC em sua mãe adotiva e uma mãe que realmente aprendeu a amar a filha e que fez das tripas coração para transmitir seus conhecimentos à criança. Em outras palavras, Diana é uma princesa amazona de Themyscira, não tenham dúvida, mas ela é, também – e talvez mais ainda -, filha de Circe e ela mesma uma feiticeira de mão cheia que faz uso amplo e irrestrito de magia para fazer o que precisa fazer, seja levar Steve Trevor de volta à superfície (porque sim, ele aparece “do nada” na desolada ilha em que Diana vive) ou lutar contra seus inimigos.
O texto de Thompson funciona em dois níveis. O primeiro, mais chamativo, mas também mais rasinho, é Diana surgindo pela primeira vez em Gateway City para defender a cidade costeira de um ataque de criaturas demoníacas que prenunciam a chegada de uma ameaça ainda mais terrível. O segundo e infinitamente mais interessante, é a história de origem da protagonista, contada por meio de cortes ao passado (não chamo de flashbacks, pois a estrutura do texto da roteirista faz algo mais fluido e mais cuidadoso do que só pontilhar cenas do passado em meio à cenas no presente) que começam com ela, ainda bebê, chegando na Ilha Selvagem para a completa surpresa de Circe. E não é que Diana contra os monstros na superfície da Terra seja desinteressante ou ruim, pois está muito longe disso, mas é que Thompson usa os artifícios “fáceis” dos kaijus para apresentar todas as características da Mulher-Maravilha adulta, que tem mais de um laço e nenhum deles o da “verdade” e cavalga a versão morta-viva esquelética de Pégaso, o famoso cavalo alado da mitologia grega, além de apresentar os personagens que gravitarão ao seu redor, notadamente o já citado Steve Trevor, além de Etta Candy e sua irmã Gia e de Barbara Minerva. Há muitas outras novidades nessa versão da Mulher-Maravilha, mas parte da graça é descobri-las ao longo da leitura, pelo que não as abordarei aqui.
Com a história dos monstrengos servindo de vitrine, Thompson, então, mergulha de verdade na construção da nova mitologia de Diana, estabelecendo uma belíssima e até comovente conexão com Circe que, de uma feiticeira fria e rancorosa, passa a uma mãe amorosa na medida em que a bebezinha cresce, com a própria Ilha Selvagem, que parece completamente desolada no início, ganhando mais contornos. É no Mundo Subterrâneo – ou Inferno ou Hades, nome do deus que controla o lugar como se sabe – que a narrativa realmente ganha estofo, revelando as características que aproximam e também afastam essa Diana da Diana mais conhecida do universo padrão da DC, como se uma outra camada de uma inteiramente nova personagem fosse sobreposta à original. E, nos dois lados dessa história – o raso e o profundo – a palavra-chave é sacrifício, ou seja, o quanto de sacrifício está envolvido em cada ato da Mulher-Maravilha, uma característica que traz belas surpresas ao longo da história e que torna tudo mais difícil e penoso para ela e para os demais personagens envolvidos com ela. Como deveria mesmo ser, a magia usada tanto por Circe quanto por Diana não é gratuita, não é sem consequências, e o roteiro explora muito bem esse detalhe, mesmo que convenientemente transforme Etta, uma antiga conhecida de Steve, em uma espécie de bruxa moderna, com direito a uma loja de ingredientes bizarros que servem para recarregar a bolsa druídica multiuso de Diana quando ela precisa.
Outro aspecto que vale mencionar é que a arte de Hayden Sherman não só é sensacional na forma como ele manipula a progressão de quadros para lidar com a narrativa, fazendo uso esperto de splash pages para chamar atenção em momentos importantes, como ele consegue dar vida à Mulher-Maravilha e demais personagens, mas especialmente a amazona, claro, de maneira semelhante ao que Thompson faz no roteiro, ou seja, respeitando a essência da iconografia de Diana, mas tendo a coragem de levá-la a rumos diferentes e ousados, como é o traje menos “perfeito” e mais realmente feito para batalhas gigantescas, além de ele não ter nenhum pudor em retratar a heroína do tamanho que ela deve mesmo ser, ou seja, ela é altíssima e fisicamente muito forte (Yannick Paquete fez isso em Mulher-Maravilha: Terra Um, mas Sherman vai bem além). Até mesmo o rosto bem grego de Diana, especialmente de perfil, é uma bem-vinda incorporação que pouquíssimos desenhistas souberam fazer na longa história da personagem. As cores de Jordie Bellaire, carregadas em tons vermelhos, amplificam a impressão de sacrifício que os atos de Diana exigem, algo que está presente até mesmo em seu braço quase que completamente tatuado.
O mencionado segundo arco, ou epílogo, batizado de A Dama ou o Tigre (The Lady or the Tiger) é um tanto quanto menos inspirado do que o arco principal, pois é carregado de explicações didáticas demais sobre alguns aspectos sobre Diana que não foram explorados nas edições anteriores. Tudo acontece quase que completamente em uma longa conversa entre ela e Hades, que não gostou nada de ela sair de seu domínio para lutar na superfície, com direito a flashbacks (aqui sim são flashbacks) que, no conjunto, sem dúvida acrescentam à narrativa mais ampla, mas que parece marretado no final, sem realmente uma boa cola narrativa. E a troca de Bellaire por Mattia de Iulis na arte (que se encarregou inclusive das cores) cria aquele “vale da estranheza”, por assim dizer, especialmente por que o italiano tem um estilo fotorrealista que é completamente diferente da pegada mais solta de Bellaire. Tudo é muito bonito, não se enganem, mas esse epílogo pareceu-me uma adição extemporânea e apressada ao primeiro arco que talvez merecesse o mesmo tipo de tratamento mais orgânico anterior.
Com o fechamento da trindade da DC nesse novo universo, ainda que outros heróis estejam ganhando ou em vias de ganhar o mesmo tratamento, acho que posso afirmar que, até o momento, essa empreitada da editora tem um saldo bastante positivo. Batman Absoluto foi interessante, não exatamente especial, com Superman alcançando um outro nível, somente para a Mulher-Maravilha chegar e atropelar tudo com uma reimaginação ainda melhor e mais profunda que promete realmente adicionar bastante à personagem. Fiquei muito curioso para conhecer mais do passado e do presente de Diana Absoluta e, se Kelly Thompson continuar no leme para os próximos arcos, a probabilidade de sucesso continuado será enorme.
Mulher-Maravilha Absoluta – Vol. 1: A Última Amazona (Absolute Wonder Woman – Vol. 1: The Last Amazon – EUA, 2024)
Roteiro: Kelly Thompson
Arte: Hayden Sherman (#1 a 5), Mattia de Iulis (#6 e 7)
Cores: Jordie Bellaire (#1 a 5), Mattia de Iulis (#6 e 7)
Letras: Becca Carey
Editoria: Ash Padilla, Chris Conroy
Editora: DC Comics
Data original de publicação:
Páginas: 208