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Crítica | Mulher Nota 1000

por Iann Jeliel
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  • Contém SPOILERS.

John Hughes certamente deveria ter escolhido ir para a fantasia mais vezes. Não só por combinar demais com sua constante idealização do imaginário adolescente, como por trazer uma abertura mais favorável ao jogo de troca de estereótipos que tanto consta de suas premissas, que nesse caso de Mulher Nota 1000, poderia por exemplo ter caído em um terreno arenoso numa leitura atual – como Gatinhas e Gatões caiu. Ora, estamos falando de uma sinopse que em tese tinha tudo para explicitar a máxima da objetificação da mulher, em que dois homens criam a mulher perfeita de suas mentes: bonita, sexy, com corpo “perfeito”, popular, atlética, inteligente, capaz de resolver qualquer bagunça ou problema com poderes, mas especialmente submissa a eles, que irá fazer sem questionar tudo o que eles bem quiserem. Há muito pretexto maldoso aí, especialmente se tratando de uma comédia besteirol que poderia usar seu caráter besteirol como muleta para sustentar o politicamente incorreto de forma arbitrária.

Felizmente, esse politicamente incorreto na fantasia se comporta como um revés porque o texto de Hughes é inteligentíssimo em posicionar o duplo sentido como o inocente da história, em cenas que visualmente são vulgares. É basicamente o reverso do que geralmente acontece quando o duplo sentido é usado, por exemplo, em animações adultas, onde o visual é todo infantil, mas esconde piadas maldosas de duplo sentido. O filme estabelece essa inversão logo de cara, quando numa das primeiras cenas, os personagens se juntam à mulher que acabaram de criar para tomarem banho juntos, como um dos primeiros desejos que eles haviam falado no início do filme, quando viram as colegas de escola na ginástica. Mas quando vão tomar banho com Lisa (Kelly LeBrock), ao contrário das intenções sexuais, os dois só ficam a observando tomar banho normalmente, ambos de roupa e ela vendo aquilo como supernormal porque tinha acabado de nascer ali – bases daquela fantasia.

E por aí vai. Não só todo sketch de comédia do filme com relação às possibilidades de se brincar com essa premissa de mulher perfeita está vinculado diretamente a esse duplo sentido, como também toda a estrutura dramática, porque diferentemente dos outros filmes de Hughes, aqui a jornada para viver o sonho jovial é específica para os nerds. É o sonho do nerd adolescente em ser descoberto no colegial ainda sendo ele próprio, ou seja, ingênuo sem precisar das malícias para conseguir mudar de status social. A jornada da dupla até se inicia com essa vontade de querer mudar a personalidade forçadamente, como demonstra toda a sequência do bar adulto. Ali eles fingem ser adultos, ficam bêbados para tentarem uma comunicação que acaba não levando a nada, ou pelo menos, não traz nenhum efeito benéfico ao futuro dos personagens. Aquela sequência se estende ao resto do caminho, que traz outras tentativas falhas da dupla em tentar se comunicar se passando por alguém que não são. A “Mulher Nota 1000” do título, portanto, acaba sendo uma mentora inconsciente para eles conseguirem do jeito deles realizar a comunicação que tanto desejam.

Mesmo que isso seja feito de forma forçada, mas ora se isso não é uma grande piada macro pensando na estrutura do duplo sentido inverso do filme. Não são eles que forçam Lisa a fazer coisas a suas vontades, mas Lisa que os força a fazerem as próprias vontades. A exemplo de quando Lisa vai tomar a dianteira para convencer os pais de Gary (Anthony Michael Hall), cena essa que serve como aquela alfinetada padrão de Hughes nos adultos que impedem o adolescente de viver a juventude, ou quando ela decide criar motoqueiros malucos para invadirem a festa na casa de Wyatt (Illan Mitchel-Smith) e programa para que os jovens sejam os únicos a conseguirem expulsá-los, logo, forçando-os a ter que confrontar aquele momento que iria os alçar a heróis, do jeito mais nerd possível, chamando a atenção das garotas de que gostam do jeito mais nerd possível.

Aliás, todo esse clímax é sensacional porque eleva a fantasia na atmosfera oitentista ao lado mais exagerado e explícito possível, enquanto trabalha ao máximo na história a desvinculação do rótulo de objetificação inicial. Os bullies do filme (um deles, interpretado pelo novíssimo Tony Stark, quer dizer, Robert Downey Jr.) passam a respeitar os nerds na festa somente para tentarem convencê-los a emprestarem Lisa para que eles possam fazer o que quiserem, o que não é correspondido, mesmo que eles ofereçam suas namoradas como mulher de troca. Naquela altura, o processo de mentora de Lisa já havia posicionado o trio num espectro de amizade potente, mas eles ainda assim aceitam criar uma outra mulher pelo computador para os bullies, o que acaba dando em uma gigantesca cilada, crescendo um míssel nuclear no meio da casa. Basicamente, o filme nesse momento confirma que a mulher perfeita não pode ser criada para ser um objeto, porque a mulher perfeita de Hughes, como dito, é aquela disposta a ajudar o homem no seu processo de amadurecimento.

No fim, a comédia de Mulher Nota 1000 acaba sendo direcionada a um verdadeiro estudo de masculinidade. Um estudo de condições estranhas, é verdade, pelo caráter lúdico e fantasioso da representação do sonho da jovialidade nerd em um recorte oitentista, mas ainda bastante verdadeiro e universal na compreensão desse estereótipo de dentro para fora. É a estranha ciência da masculinidade, a estranha ciência da mente da juventude que John Hughes compreendia como ninguém.

Mulher Nota 1000 (Weird Science | EUA, 1985)
Direção: John Hughes
Roteiro: John Hughes
Elenco: Anthony Michael Hall, Kelly LeBrock, Ilan Mitchell-Smith, Bill Paxton, Suzanne Snyder, Judie Aronson, Robert Downey Jr., Robert Rusler, Vernon Wells, Britt Leach
Duração: 93 minutos

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