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Crítica | “Nau” – Bia Neves

Uma carta sobre os peregrinos marítimos e urbanos da vida.

por Davi Lima
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Nau

Esse primeiro álbum musical de Bia Neves, cantora cearense do Cariri, reflete algo basilar para tornar a música identificável e de melhor interpretação: a vivência. Nau mantém intacta a frase do escritor Hans Rookmaaker sobre como a arte musical é de difícil análise pelos efeitos sonoros que nos penetram em abrangência. Porém, além de tornar a música como grande arte por sua dificuldade de leitura, ela pode crescer ainda mais por ser ainda melhor compreendida. E é nessa característica que Bia traz Nau como história com uma conexão muito limpa e madura entre a poesia recheada de metáforas, a melodia atmosférica e a vivência ordinária – especialmente cristã.

No desenvolvimento da música cristã no Brasil, não gospel, – como está bem explicado aqui – sempre houve muita poesia, narrativas e melodias que contam histórias vivas. A necessidade disso é o próprio Evangelho que é um testemunho, sobre Jesus ou sobre Jesus fazendo parte da vida de alguém. Desde dos cânticos de igreja mais clássicos da Harpa Cristã e Hinários, passando pela década de 50 com Feliciano Amaral, Luiz de Carvalho, 60 com Victorino Silva, Guilherme Kerr, até décadas depois os grupos com mais brasilidade surgirem como Vencedores por Cristo, Grupo Logos, Rebanhão que traziam esse caráter narrativo de músicas sobre vivências cristãs no mundo real. No século XXI, Céu na Boca, Palavrantiga, Crombie, Resgate entre outros cantores como Stênio Marcius, Gerson Borges e a dupla Arrais trouxeram ou mantiveram ainda mais poesia e estilos musicais associados ao cristianismo. E mais recente no Nordeste, o Coletivo Candiero tem enfatizado a vivência como reflexo do cristianismo, entre a poesia e a cultura.

Embora Bia Neves seja a ponta do iceberg desse colocar da vivência tecendo sua fé em uma narrativa de disco, existe um minimalismo em como ela enxerga o lírico e os símbolos que usa para compor personagens e cenários, ao ponto de tornar as notas musicais vocalizadas em algo concreto. Samuel Palmeira e Milla Sampaio, parceiros musicais de Bia em Nau, por exemplo, tem suas carreiras musicais que partem do ordinário até crescerem canções melódicas. Bia não parece inflar técnicas e inspirações, e sim traduzir uma vivência. 

Nau, já com seu título simbólico de um navio com velas de séculos medievais, disposto a grandes navegações, não é explicado para quem ouve a segunda faixa homônima. A tradução não é um explicado, e sim uma técnica invejável de quem conhece a adaptação e a linguagem do contexto que se vive. Mesmo que a especificidade possa não ser de fácil identificação, quando se escreve uma boa narrativa o específico se torna intrigante que leva o ouvinte a se interessar.

É assim que o Evangelho é contado, com conexões, e Nau começa com a faixa Navegar de forma cirúrgica para contar sobre a história de Bia. Na tríade melodia, atmosfera e vivência, o violão introduzido por Judá Holanda e a voz de Milla Sampaio preparam o terreno para a voz calma e equilibrada dizendo: “É normal/ Começo de jornada/ O medo aperta o peito, o que será que vem aí?”. E ao longo da faixa há traduções de sentimentos com concretos bióticos da natureza, enquanto o eu lírico, também concreto, fala do nau como morada. Isso tudo sem perder o significado espiritual: “Descobrir, tomar conhecimento/ Quem foi que no meio desse mar/ Plantou a rosa dos ventos”.

Além das metáforas, escolha de palavras e a construção musical, há a forma de conexão para tornar tudo em uma história calma e simples para se admirar em Nau. As expressões pessoais como nesses versos: “Azul/ No meu coração nu/ Existe um mapa astral/ Para quem não acredita/ É tu/ Meu Cruzeiro do Sul/ Meu leme, minha nau/ Meu Norte”. As partes do navio, as questões geográficas e o universo da navegação são tratados com pronomes pessoais de significação, como uma poesia que fala tranquilamente do concreto viver com isso. Não é puramente romântico, como as metáforas náuticas do Renascimento, como algo barroco em que a imagem e a palavra se tornam dramas trágicos de uma vida sofrida. Dia Bom e Dia Ruim, faixas seguintes, evidenciam a proximidade de Bia, talvez, de um pós-impressionismo das pinturas.

Com um melancolia e uma percussão sutil que surge na frase de efeito no final do refrão, Dia Bom traduz como Nau nem é simbólico, nem romântico, é vivência:

Bom Almoçar
Pois nem todo dia
Há banquete para compartir
E um dia normal ainda é um dia bom

Se Navegar e Nau caracterizam bem a naturalidade da jornada, sem medo, mas com incertezas humanas, Dia Bom vai focar no mais ordinário e torná-lo no viver em si. Estar vivo já caracteriza o bom, enquanto o Dia Ruim, que poderia se aproximar de algo mais barroco, quebra com o exagero quando define o mau porque a esperança ainda não chegou, no contraste do presente incerto, como um choro sem soluço:

Sei que haverá quem me acuda
Eu posso até voltar, remar
Talvez procure alguma ajuda
Mas hoje não

E como finalização do Dia Ruim, Milla Sampaio é a ajuda de Bia Neves, cantando em inglês (como definiu sua carreira musical), induzindo um sono melódico, com as teclas do piano que a própria Milla toca. O Dia Ruim é o antes do sono da calmaria na nau, e o Dia Bom é viver o normal. Pois como a faixa Migrantes diz: “Esperando o prometido/ Que Permite alguém sonhar. É isso que vai definir como você enxerga seu dia”.

A verdade é que como Nau nunca desliza no romântico, no depressivo ou no otimismo, alcança-se o concreto a todo instante. Se as metáforas náuticas que soam simbólicas no primeiro momento se tornam traduzidas em meio a atmosferas tranquilas com violão, piano, voz e percussão, a caminhada narrativa vai encontrando o êxodo urbano, a migração comum de muita gente. E como reflexo da vida cristã que enxerga na melodia outras histórias com outras cores, Cortejo anima o álbum, quase um encerramento.

Mesmo que Marés seja o single que apresentou Bia, que deu o aporte para Nau lançar, e tratar da peregrinação cristã, de estar e não ser do lugar, e várias interpretações teológicas que possa ter na composição geográfica do Cariri e as mutações sobrenaturais que surgem como anseio de voltar para o lar (quase Canção do Exílio de Gonçalves Dias); Cortejo é um ponto final. Marés pode ser os pontos nos i, tracejando a vivência espiritual e cristã banhada pela cultura cearense, envolta da Chapada do Araripe e do sonho nordestino: sertão virar mar; mas Cortejo é o oxímoro quase perfeito da mensagem do álbum – o fim interminável.

Esse oxímoro citado, quando o paradoxo produz uma ideia, poderia ser algo similar a ideia de eternidade, o tempo hebraico que o cristianismo busca viver no presente. Cortejo conta a vida, a vivência de rastros, da infância, da memória, da festa que marca, como um alarido cheiroso que apaga após a banda ir para casa. A narrativa dessa canção é estupenda, quando se compreende o término investigado para continuar ouvindo e vivendo a festa que acabou. O trompete, e flugelhorn, a flauta, tudo cresce ao final da música, o momento diferente melodicamente do álbum, como uma memória do futuro. Enquanto Marés fala de um apocalipse no limiar poético entre o naturalismo e a tristeza – contendo toques de esperança – Cortejo não acaba.

Nau é esse tipo de álbum de muitas histórias pelas melodias, mas na verdade há uma convergência de conexões assim como a voz de Bia: calma, serena e tranquila. Se o Evangelho fala de um Cristo com esses adjetivos, da história sobre esse ser divino encarnado, quem sabe a conexão espiritual não comece com um dia normal, um dia bom.

Aumenta!Cortejo
Diminui!: –
Minha Canção Favorita do ÁlbumDia Bom

Nau
Artista: Bia Neves
País: Brasil
Lançamento: 03 de setembro de 2022
Gravadora: Via Veritas Studio
Estilo: MPB, Folk

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