A base que o Beijing Enlight Pictures utilizou para a criação do Universo de Ne Zha foi um romance chinês do século XVI, A Criação dos Deuses (ou Investidura dos Deuses) que mistura política, história, sociedade e fantasia, dramatizando a derrubada do rei Di Xin (último da dinastia Shang, 1600 – 1046 a.C.) por Ji Fa, que estabeleceria a dinastia Zhou (1046 – 256 a.C.). Mesclando preceitos do budismo chinês, do confucionismo, taoismo e da mitologia da China, com a presença de divindades, demônios, imortais e espíritos (normalmente em forma de avatares), a obra brinca com a ideia de uma ligação direta entre humanos e deuses e explora diferentes camadas da complexa relação entre os dois mundos, além da forma como as alianças e as transformações pessoais e sociais são necessárias ao longo de um processo de alteração de status social e fases emocionais da vida.
Todos esses elementos estão postos, de maneira bastante atualizada e estilizada, mas ainda assim, clara, em Ne Zha, filme de 2019 que teve uma ótima recepção do público chinês e acabou impulsionando a continuação da trama em Ne Zha 2: O Renascer da Alma, que tem contra si o fato de não funcionar de maneira perfeita sem o seu antecessor. É claro que o espectador poderá compreender a estrutura da obra, os dilemas dos personagens e a história, em seu encadeamento, mas o roteiro não dedica tempo algum para explicar (contextualizar/apresentar) personagens que são claramente importantes e situações notáveis já em andamento, o que pode trazer muitas dúvidas para os espectadores e dar ao filme a impressão de que deixou de desenvolver elementos centrais de sua história. Como o público do Ocidente não está acostumado com o tipo de mitologia apresentada na obra e com muitos dos valores que costuram o enredo, essa ausência acaba sendo uma fraqueza e vai incomodar os mais exigentes que não tenham visto a animação original.
Se no longa de 2019 vimos o protagonista desafiando o destino, aqui, sua jornada se completa numa esfera ainda mais épica, abraçada por uma produção de alto investimento e número grande de pessoas envolvidas, entregando um produto que é visualmente esplendoroso. Existem cenas muito complexas de ação, mudanças constantes de cenários, variação inteligente na maneira como os personagens e as criaturas se movem ao longo do filme (e como remodelam esses movimentos a depender da fase do enredo, sem criar aquela cadência mecânica que vemos em uma gigantesca leva de animações) e uma inserção quase inacreditável dos espaços naturais e mitológicos na história, algo que eu particularmente gosto muito (daí minha adoração a Flow, só para citar algo de uma safra próxima a Ne Zha 2) e que neste filme é trabalhado com muita precisão, da direção de fotografia e sua paleta lindíssima de cores à qualidade da animação.
Como partimos diretamente dos eventos após o fim do primeiro filme, temos uma sequência de abertura que escala muito rapidamente as coisas, partindo da ressurreição do Orbe Demoníaco (Ne Zha) e da Pérola Espiritual (Ao Bing, o filho do dragão) para a interferência imediata de Shen Gongbao, o demônio metamorfo que tem planos próprios de poder e ascensão à imortalidade — a hierarquia mitológica é uma das linhas de abordagem do texto e tanto o poder quanto a governança são fortemente discutidos e criticados em diversos aspectos no filme — e as consequências trágicas que levarão o protagonista revivido na flor de lótus e a alma de Ao Bing a uma “jornada do herói” que o levará à ascensão imortal e lhe dará acesso ao Elixir de Reparo. As provas pelas quais os protagonista passa, a maneira como elas são amarradas ao texto e as consequências irrevogáveis que temos no final da obra mostram quanto Ne Zha 2 tem a ensinar aos criadores ocidentais no sentido de não subestimar a inteligência do público e seguir com o plano de ação e reação, fazendo com que o protagonista aprenda com os erros, entenda e processe as perdas e saiba lutar por uma boa causa, vencendo-a com dignidade.
O Renascer da Alma tem uma reta final emocionante e um desenvolvimento que impressiona pelo novo fôlego que traz em sua história, pela abordagem estética que não faz feio frente as mais caras criações hollywoodianas; que muitas vezes parece encarnar a estética e a movimentações de videogames, e que tropeça pouco (basicamente na linha de humor repetitivo e meio bobo — que eu já tinha apontado como um defeito do filme anterior — e na dependência de conceitos importantes do filme anterior), deixando claro para o espectador o porquê de seu enorme apelo. Uma animação visual e narrativamente diferente, tocante e de alta qualidade.
Ne Zha 2 (哪吒之魔童闹海 / 哪吒2 / Nezha: Mo tong nao hai) — China, 2025
Direção: Yu Yang
Roteiro: Xixing Lu, Zhonglin Xu, Yu Yang
Elenco (vozes): Yanting Lü, Mo Han, Hao Chen, Gong Geer, Yuze Han, Qi Lü, Deshun Wang, Xinglinr, Wei Yang, Yu Yang, Jiaming Zhang, Yunqi Zhang, Yongxi Zhou
Duração: 144 min.