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Crítica | Neblina e Sombras

por Luiz Santiago
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Em algum lugar da Europa, no início da década de vinte, um cruel assassino assusta moradores e policiais de uma cidade. Um grupo de cidadãos justiceiros unem-se em rondas noturnas para tentar capturá-lo. Dentre esses cidadãos está Kleinman, um covarde contador que ao tentar sair de uma enrascada, sempre acaba entrando em outra maior ainda. Do outro lado da cidade, há um casal de circo em crise. Após uma discussão, a mulher foge e vai parar em um bordel onde um universitário rico vai passar com ela um de seus melhores momentos. Aos poucos, todas essas pontas dramáticas serão unidas. Eis então a trama de Neblina e Sombras (1991), um dos grandiosos exercícios estéticos de Woody Allen, um filme todo realizado em estúdio, o maior cenário urbano já construído em Nova Iorque.

A obra é a adaptação de uma peça de Woody Allen chamada Morte. Salvo as mudanças feitas para a tela, temos um filme sombrio, pessimista e com um elenco saturado de estrelas, a maioria com pontas rápidas e até mesmo mudas (como a participação de John C. Reilly como um dos policiais investigadores, além da breve aparição de Madonna).

Neblina e Sombras é uma homenagem ao expressionismo alemão e foi uma carta branca para o diretor de fotografia Carlo Di Palma trabalhar o tipo de luz artificial que tanto apreciava imprimir aos filmes do diretor. O resultado não poderia ser menos deslumbrante. Ângulos, luz e ambientação são perfeitamente expressionistas e o próprio enredo, apesar de puramente woodyano traz a aura do desastre e da loucura típicas do movimento dos anos 1920. Entre assassinatos e problemas pessoais, sobra espaço para questões filosóficas e existencialistas, todas elas surgidas nas conversas entre as prostitutas e um jovem estudante (John Cusack, em sua primeira parceria com Allen).

As personagens do filme vivem os seus dias quase mecanicamente e quando param um momento para pensar nisso, uma angústia e um ressentimento enormes se apoderam delas. Todos estão completamente insatisfeitos com o que são e com os possíveis rumos do mundo ao seu redor. Vale lembrar que essas reflexões vem à tona em uma única noite, período diegético que o filme abarca.

Salvo o trabalho de reconstituição imagética realizado pelo diretor em Zelig (1983), nenhum outro filme que dirigiu se aproxima do rigor na direção de arte, detalhismo nos cenários e fidelidade fotográfica obtidos em Neblina e Sombras (mesmo Meia-Noite em Paris!). Se as histórias tipicamente woodyanas estão menos intensas aqui, a parte técnica compensa o peso. É impossível assistir ao filme e não se espantar com a grandiosidade da reconstrução e criação de uma atmosfera fílmica que assumisse o mesmo nível obscuro dos cenários. Na mesma linha, as personagens, a maquiagem e os figurinos acompanham tais indicações. Até as atitudes remetem aos filmes expressionistas, mesmo quando pontuadas de humor, como a sequência em que Kleinman entra na casa de sua ex-noiva (Julie Kavner, sempre ótima) e é expulso da maneira mais macabra e engraçada possível.

Viver em mundo ameaçador e cheio de dificuldades é o foco de análise do diretor aqui. O que as pessoas fazem para esquecer que dezenas de corpos tombam à sua volta? Qual a função de um circo em uma cidade onde mães solteiras com bebês de colo morrem de fome? Que sentido tem a burocracia das empresas, a corrupção da igreja, a máfia, a prostituição e o misticismo que se proliferam pelos becos se todos estão igualmente ameaçados pela morte? Nesse mundo, não é de se estranhar que questionamentos sobre a existência após a morte e sobre Deus venham à tona, e esses momentos se constroem com tamanha seriedade e adquirem tal peso no roteiro, que a história dos assassinatos e das intrigas acabam vez ou outra empurradas para segundo plano na percepção do espectador, o que não é ruim.

Tão inconstante quanto a neblina que toma a cidade, o filme se conclui após uma inesperada e rápida sequência de fatos. Por ser imediato e incômodo em seu contexto, o final deixa o espectador com aquele sorriso meio constrangedor de quem esperava uma resposta mais fundamental e concreta para as perguntas levantadas. Como se acusasse o espectador e ao mesmo tempo revelasse a natureza interna da fita, a necessidade humana da ilusão aparece no diálogo entre o mágico e seu aprendiz, e um fade out nos apresenta os créditos finais. Woody Allen se despede de seu mundo expressionista com uma pequena tirada sobre o que é verdade e representação — e como nós precisamos diariamente dessas duas doses vitais.

A inconstância permanece, a escuridão segue banhando as ruas e a fria paisagem permanece imóvel. O que muda é apenas a escolha para uma nova vida, e mesmo ela traz com sigo uma porcentagem de erro. Há perigo por todos os lados. É preciso, portanto, escolher a que tipo de perigo deseja-se expor. O resto é uma mistura de ilusão e realidade, e como a vida de cada de nós, tomada [também] por neblina e sombras.

Neblina e Sombras (Shadows and Fog, EUA, 1991)
Direção: Woody Allen
Roteiro: Woody Allen
Elenco: Woody Allen, Mia Farrow, John Malkovich, Madonna, John Cusack, Jodie Foster, David Ogden Stiers, Lily Tomlin, Donald Pleasence, Michael Kirby, Fred Gwynne, Julie Kavner, John C. Reilly
Duração: 85min.

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