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Crítica | Nêmesis

por Giba Hoffmann
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Contém spoilers referentes à minissérie!

Após contribuir de forma central com o reerguimento da Marvel Comics no início do novo milênio, o roteirista Mark Millar passou a concentrar seus esforços em suas propriedades autorais. Antes de fundar propriamente a Millarworld, companhia que centralizou suas criações levando-as para outras editoras, o autor ensaiou alguns projetos iniciais de seu selo/universo particular dentro do selo autoral da própria Marvel, o Icon, cujo papel parece ter sido justamente o de tentar não deixar escapar os trabalhos advindos da bem-sucedida onda de roteiristas dos anos 2000 como Bendis, Brubaker e, é claro, o próprio Millar.

Tendo já deixado sua marca forte nos personagens super-heroicos em ambos universos Ultimate e 616, em suas séries da Icon o roteirista buscou abordar cenários e temáticas semelhantes, com um toque a mais de Millar e um toque a menos de Marvel. Para quem está familiarizado com o trabalho do autor, fica claro que isso significa ir um pouco mais longe do que o “longe demais” da tradicional editora, tendo a liberdade de apresentar situações que seriam proibitivas em se tratando de suas valiosas marcas registradas. Assim é que, dando sequência ao sucesso de Kick-Ass, a minissérie Nêmesis chegava promissora ao selo, com a arte de Steve McNiven reunindo a equipe criativa por trás dos bem recebidos Guerra Civil e O Velho Logan. Assim, surpreende que a série tenha tido uma recepção apenas morna, na melhor das hipóteses, representando um escorregão após um verdadeiro tour de force por parte do autor. Sua prometida sequência ainda não aconteceu e sua adaptação cinematográfica entrou no temido development hell. O que teria saído de errado? Será que Mark Millar, em sua insaciável mania de chocar, foi longe demais dessa vez? Será que seu estilo ficou manjado? Será que o quadrinho não conseguiu entregar aquilo que prometia? Bem, um pouco de cada coisa, de certa forma.

O que marca uma primeira leitura de Nêmesis, especialmente tendo-se em mente a equipe criativa e a época de seu lançamento, é uma espécie de frustração de expectativas – no mau sentido do termo. Ou seja, não se trata de uma obra que se apoia na sua apreciação pelos trabalhos dos autores e, sem que você espere, te entrega algo fantástico e inesperado (como, por exemplo, Os Supremos 2 ou o próprio Kick-Ass tão bem o fizeram, para ficar no território millaresco). Marketeado inicialmente como uma história sobre “o que aconteceria se o Batman fosse um filho da puta”, a minissérie cumpre as batidas de sua premissa de forma competente porém quase mecânica, esboçando situações interessantes aqui e ali mas que no todo amontoam em apenas uma boa história de ação. Não há nada de errado com isso, a princípio. Porém, nota-se uma certa distância entre o potencial e a execução final do projeto, e isso tanto em termos de roteiro quanto de arte.

O lápis de McNiven não apenas não encontra seu peso certo em tinta e cores, com uma finalização aguada, mas seu próprio traço adota um estilo mais minimalista em detrimento do resultado final, visivelmente aquém de outros trabalhos do renomado desenhista. A impressão que se tem é que o roteirista mirou em Frank Quitely e acertou em Steve Dillon (e não o Dillon afiado e dinâmico de Preacher, mas sua versão entediada de Wolverine Origens). A arte em geral falha em empolgar e em transmitir o dinamismo necessário para as diversas cenas de ação, embora estas ainda se saiam melhor do que os diálogos, onde reina uma estaticidade exagerada e um ritmo acelerado de cortes, por vezes com um enquadramento estranho para as cenas, como se o que se visse fosse, ironicamente, mais um storyboard para um futuro filme do que uma história em quadrinhos por si mesma. Opção de estilo, sem dúvida, mas que poderia ter se beneficiado de mais tempo para se apresentar a história, com cenas mais longas do que a pululação frenética que se passa nas quatro edições que compõem a minissérie. E é aí que reside o principal problema.

Se, por um lado, fica a impressão de que uma metragem mais tradicional de seis edições poderia potencialmente favorecer a saga, por outro temos que uma de suas principais qualidades é justamente o formato rápido e preciso, a sensação de se ir direto ao ponto sem a qual o roteiro provavelmente mostraria de forma mais explícita suas falhas. Toda a história adquire um sentido preciso na quarta edição cujo desfecho funciona como punchline, dando um necessário fechamento para o restante da obra, ainda que tarde demais. A sensação não é a de se acompanhar um encadernado de revistas mensais mas sim de uma graphic novel fechada. O roteiro de Millar parece saber exatamente o que quer, no final das contas. Fica a dúvida se, no final das contas, seria essa a melhor forma de explorar o conceito.

O personagem titular denomina-se o primeiro e legítimo supervilão, no sentido em que sua absurda competência e capacidades fazem dele o literal equivalente negativo de um super-herói. Pró-ativo, versado em combate com e sem armas de fogo das mais diversas, com um arsenal fantástico de bugigangas, esconderijos secretos e uma mente brilhante para planejar seus feitos, Nêmesis é um anti-Batman de uma forma que, por exemplo, o próprio Coringa não o é (já que eles diferem, no mínimo, em relação ao modus operandi de suas personas fantasiadas). O design de seu uniforme e a própria forma como McNiven retrata seu rosto encapuzado sugerem o tempo todo e de forma explícita a figura do cavaleiro das trevas, apropriadamente invertido em branco (o que, intencionalmente ou não, o faz lembrar um outro criminoso superpoderoso e figurão, mas que no fim das contas trabalha para o bem, o lendário Fantomex dos X-Men).

É sem dúvida algo na linha das descontruções do gênero super-heroico que apetecem ao autor, ainda que não se trate de algo totalmente inovador, já que o personagem claramente remete a figuras tão antigas como Fantômas, Diabolik ou Arsène Lupin. A diferença, é claro, é que a moral de Nêmesis dá um passo mais longe na direção do abismo: não falamos aqui de um galanteador ladrão de casaca, mas de um sádico terrorista fantasiado. A estrutura da saga, no entanto, segue um misto entre um pipocão de ação e um romance de crime onde acompanhamos um supercriminoso  em seus feitos fantásticos (fantasticamente terríveis, no caso de Nêmesis). Nesse sentido, tinha tudo para impressionar sob a pena de Millar, porém a entrega aqui é, como já adiantamos, mais um sobrevôo sem compromissos do que o tipo de narrativa envolvente que costuma marcar seu trabalho.

São várias as escolhas de roteiro que deixam um ar de confusão para o leitor, em especial no que se refere à tonalidade da história e no nível de realismo de que se trata. O enquadramento e a narrativa cinematográfica contrastam com a arte mais quadrinhesca e, mais ainda, com as formas como são apresentadas certas situações e diálogos. Ah, os diálogos. Aqui certamente percebe-se que Millar deixou cair a bola, em especial em comparação a seus trabalhos na Marvel, sempre recheados de momentos altamente citáveis. De um lado, temos as linhas satíricas de humor negro, que em sua maioria soam unusualmente forçadas e aparecem em momentos impróprios. De outro, linhas de diálogo expositivo escritas de forma tão crua que mais parecem um rascunho. Motivações são entregues de forma rápida e sem poesia, as reuniões de um conselho de segurança do Pentágono parecem uma reunião de trabalho escolar. Blake Morrow, o chefe de polícia casca-grossa que serve de herói para a história, tem pouquíssimos momentos interessantes para além de gritar ordens e comandos. Nêmesis, por outro lado, tem seus bons momentos de badass, sendo claramente o personagem mais bem trabalhado da trama.

Se os diálogos não brilham, as cenas de ação, por outro lado, são obviamente o ponto forte da história. Todos os grandes ataques de Nêmesis são criativamente bolados e bem executados na arte de McNiven, em especial a fuga da prisão, ponto alto da minissérie, recheado de momentos genuinamente fantásticos e reunindo os melhores traços do desenhista para a história. Mesmo nesses momentos, fica a sensação de se estarem empilhando furos e mais furos de roteiro, ou no mínimo passagens mal-explicadas, com saltos mirabolantes de situações. As armadilhas preparadas pelo grupo de Morrow não convencem, mesmo se levando em conta que o vilão propositalmente caia nelas como parte de seu plano. Uma narrativa que se baseie nesse tipo de disputa precisa de bases sólidas e boas sacadas para que as reviravoltas tenham o efeito desejado, e aqui a coisa cambaleia por mais de uma vez. A construção do vilão também é de levantar as sobrancelhas, com sua história pessoal entregue de forma inesperadamente rápida e direta na segunda edição, com tons de um dramatismo quadrinesco um tanto exagerado.

Por toda a história, fica a dúvida se Millar está sendo moderado demais ou se decidiu chutar o balde de uma vez por todas. O realismo aparece lado a lado com o mais puro gibi, informações importantes são entregues do nada o tempo todo e os acontecimentos hiperbólicos da trama (como, por exemplo, a chacina de mais de 20 mil funcionários da defesa americana e depois do próprio Presidente e de toda a Casa Branca) não parecem repercutir minimamente no mundo onde a trama se passa. Por outro lado, a inconstância de tom ajuda a intensificar as já grandiosas cenas de ação, dando a coisa toda um toque de imprevisibilidade extra, além, é claro, de possibilitar momentos impagáveis de referencialidade ao universo do homem-morcego, em especial com a “Nêmesiscaverna” e a cena das charadas que remonta à saudosa série de TV com Adam West, porém retratando crimes bem mais sérios do que os cometidos pelos vilões daquela época. A revelação final de que o sargento Stuart era um agente infiltrado e que Nêmesis não passava de um cliente de um negócio misterioso que vende para superbilionários entediados a experiência de ser um supervilão lança uma nova luz sobre a trama, dando algum sentido para esses furos de roteiro.

Todo o passado melodramático do vilão? Manufaturado para pôr a culpa em um jovem problemático desaparecido, o qual teria motivos para buscar vingança contra Morrow. As armadilhas sem sentido que “pegaram” Nêmesis, as exposições aleatoriamente precisas de seu caráter e ações prováveis? Stuart agindo como bom infiltrado. Se o leitor sente-se devidamente enganado e recompensado pelo twist inesperado, é o tipo de coisa que, passado um tempo, leva a pensar que, embora tenha servido para um bom desfecho, nem tudo fora justificado. Afinal de contas, se Morrow era assim tão esperto, como não percebeu que Nêmesis, sendo assim tão esperto, jamais cairia na armadilha estapafúrdia do tal transplante infantil?

E, por falar em transplante infantil, vale encerrar notando a necessidade da história em chocar, que transparece especialmente devido à execução desajeitada, chegando ao nível do completo e total absurdo com a trama envolvendo os filhos de Morrow e uma inseminação artificial, que acaba parecendo uma legítima sátira de Millar por ele mesmo. Muito do texto, assim como as capas das edições mensais (“Faz Kick-Ass parecer uma merda”? Sério, mesmo?), parecem adotar uma postura irônica frente ao próprio material, como que querendo inserir nele um recurso contra suas possíveis inconsistências internas. De maneira geral, é essa ironia que acaba sendo a grande queda de Nêmesis, que na dúvida entre ser um divertido thriller de ação e um show de violência extrema beirando a auto-paródia, acaba ficando com esse incerto meio-termo, que por vezes diverte e por outras deixa a impressão de que a obra fora lançada ainda em estágio de rascunho. Uma leitura que certamente diverte e que vale a pena ao entusiasta do gênero pelo ritmo bem acertado e pelas boas cenas de ação, no mínimo, mas que poderia ter sido muito mais.

Nêmesis (Nêmesis)
Nos EUA: Nêmesis #01 – #04 (Maio/2010 até Dezembro/2010)
No Brasil: Nêmesis (Capa Dura, Fevereiro/2013)
Roteiro: Mark Millar
Arte: Steve McNiven
Cores: Dave McCaig
Capas: Steve McNiven, John Cassaday, Mark Millar
Editoria: Daniel Ketchum, Nick Lowe
Páginas: 116 Páginas

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