Começo essa crítica proclamando minha mais completa surpresa com Nihonjin, primeiro romance do brasileiro de ascendência japonesa Oscar Nakasato que conheci por intermédio de um “clube do livro” de que minha esposa participa e cujo título, que significa japonês em japonês (mas japonês de nacionalidade, pois a língua japonesa é nihongo), pois, pelo seu tamanho diminuto, pela cor rosa clara e pelo desenho “fofo” de uma loja japonesa no Brasil na capa da edição mais recente, imaginei que estaria diante de uma historinha de leitura simples e gostosa sobre um neto falando de seu querido ojichan (vovô) que chegara ao país na onda migratória no começo do século XX. No entanto, o que Nakasato escreve não só vai muito – mas muito mesmo! – além disso, como seu estilo sóbrio, seu emprego cirúrgico das palavras e sua pesquisa histórica faz de Nihonjin não uma obra descartável, daquelas que desaparecem da mente do leitor assim que a última página é virada, mas sim um excelente apanhado da imigração japonesa para o Brasil que tem como objetivo central refletir sobre temas dilacerantes como o preconceito racial, a misoginia e o nacionalismo radical tanto de japoneses quanto de brasileiros em uma construção que fala de deslocamento, da necessidade de pertencimento e do conceito da própria identidade.
Contado a partir de um esforço de memória de um neto adulto (que permanece sem nome por escolha do autor até o terço final) sobre seu avô Hideo que, com sua primeira esposa Kimie, imigra para o Brasil para enriquecer e, em seguida, voltar a seu amado país, desembarcando em São Paulo para trabalhar na fazenda de café Ouro Verde como lavrador, Nakasato explora, em breves capítulos, momentos marcantes da vida desse homem e de outros familiares, mas sempre mantendo o eixo em Hideo. Parte reminiscências de histórias contadas ao autor por seus familiares e parte pesquisa séria sobre os nipônicos que aqui aportaram, Nihonjin não oferece alívio e não tenta em momento algum transformar Hideo em uma figura idealizada, por quem o leitor pode torcer. Muito ao contrário, Hideo é um homem que representa os valores dos costumes tradicionais japoneses que só passaram por modernizações a partir de 1868, com a Restauração Meiji, ou seja, ele é um conservador orgulhoso que coloca seu país natal e os japoneses (os homens, especialmente, claro) em um patamar muito acima dos demais países e nacionalidades, um homem que seguiu a sugestão do Imperador de imigrar para enriquecer sem ter a capacidade de compreender a real intenção da autoridade máxima – à época considerada divina – de sua terra que era, dentre outras, arrefecer o crescimento populacional do país.
E o autor não perde tempo em nos apresentar a esse personagem desagradável que faz de sua esposa Kimie não mais do que uma subordinada sem voz, tendo não só que trabalhar na lavoura, mas também em casa, servindo-o, sem sequer dirigir-lhe uma palavra de conforto pelas saudades profundas que ela sente do Japão, proibindo-a até mesmo de forjar amizade com uma mulher negra que também trabalha no cafezal não por ele querer a mulher em casa o tempo todo, mas sim pela negra ser negra, em uma demonstração direta e inconfundível de preconceito racial que é igual ao mesmo sentimento arraigado nos brasileiros brancos que, lá atrás, ainda na primeira metade do século XIX, fomentaram a vinda de europeus para o Brasil para “embranquecer” a raça, preconceito esse que se manifesta também contra os japoneses que aqui aportaram. O tom estabelecido pelo melancólico primeiro capítulo acompanha todo o restante da leitura, com a educação severa dos filhos de Hideo, a radicalização do avô com o fim da Segunda Guerra Mundial e a recusa de uma parcela pequena dos japoneses em aceitar a derrota com a tomada de ações radicais que muitos leitores mais novos podem se espantar por terem efetivamente acontecido e assim por diante.
Nakasato revela-se já aqui como um daqueles raros autores que se recusa a desperdiçar palavras. Todas as suas escolhas são cuidadosas, cada oração encaixa-se no todo harmônico que ele presenteia aos leitores e cada página é não só carregada de informações que misturam eventos reais com biografia e ficção, como também repleta de sentimentos poderosos que não deixam que quem quer que mergulhe nessa narrativa passe incólume da experiência. Entre a Kimie sempre descrita como pequena e fraca, mas que, na verdade, é uma mulher subjugada por tradições acachapantes e por uma distância maior ainda de seus entes queridos, passando pelo inquieto Haruo, um dos filhos de Hideo, que demonstra ter vontade própria desde pequeno e enxerga exatamente como é o pai, chegando no próprio narrador que fecha o círculo da experiência nipônica no Brasil, há muito o que absorver em Nihonjin, seja o leitor um nihonjin ou descendente, seja ele um mero gaijin como eu seria chamado por Hideo mesmo em meu próprio país.
No final das contas, tamanha é a clareza e precisão do que Oscar Nakasato escreve, que Nihonjin pode ser interpretado também como uma obra sobre o momento atual pelo qual o mundo passa, apesar de ela ter sido originalmente publicada em 2011. Vivemos em um mundo binário, com posições radicais de um lado ou de outro do espectro político, com alas extremamente conservadoras recusando-se a acreditar naquilo que está diante de seus olhos. Hideo, muito longe de ser o “vovozinho simpático que gostaríamos de amar”, precisa ser encarado como um exemplo a não ser seguido de humanidade, como alguém que se recusa a aceitar qualquer tipo de acomodação que bata de frente com convicções profundamente enraizadas em si. No entanto, é também essencial que o leitor compreenda que Nakasato não está criticando só um japonês conservador isolado que chegou no Brasil no começo do século passado, mas sim também a sociedade japonesa da época e, claro, o Brasil preconceituoso e xenófobo do mesmo período, com reflexos até os dias de hoje e, mais ainda, do recrudescimento de um nacionalismo anti-imigração que se espalha novamente hoje pelo mundo todo, nas mais diferentes e supostamente democráticas nações, sentimentos esses que podem ser encontrados em cada palavra que o autor minuciosamente insere em seu romance que não deve de forma alguma ser ignorado pelos leitores que eventualmente revirarem os olhos em razão da capa quase infantil que a editora inexplicavelmente decidiu encomendar.
Nihonjin (Brasil, 2011)
Autoria: Oscar Nakasato
Editora original: Editora Benvirá (Fósforo Editora – edição lida)
Data original de publicação: 1º de janeiro de 2011 (04 de fevereiro de 2025 – edição da Fósforo)
Páginas: 144