Uma leitura, no mínimo, instigante. Publicado em 2002, Niketche: Uma História de Poligamia é o famoso livro de Paulina Chiziane que aborda a poligamia em Moçambique, utilizando uma dança tradicional do norte do país como metáfora, que simboliza a conexão entre identidades culturais diversificadas. A trama gira em torno de Rami, a primeira esposa de Tony, que decide investigar as ausências frequentes do marido e descobre que ele mantém outras quatro esposas e doze filhos, revelando a complexa realidade da poligamia e o impacto que essa prática cultural tem na vida das mulheres. A obra insere-se em uma sequência de romances que exploram a pluralidade cultural e as identidades femininas em Moçambique. Na narrativa, Chiziane explora profundos questionamentos sociais e culturais enfrentados pelas mulheres, colocando em evidência temas como a desigualdade de gênero e as tradições patriarcais que organizam suas vidas. A protagonista, casada há 20 anos, reflete a condição de submissão e desamparo em que muitas mulheres se encontram, frequentemente tratadas como propriedades dos homens. Por meio dessa crítica, a autora ilumina as dificuldades enfrentadas por mulheres em contextos de poligamia, enfatizando a vulnerabilidade imposta pelas normas sociais e pela própria estrutura familiar, um tema bastante atual e ainda alvo de muitos debates e reflexões.
Na obra de Paulina Chiziane, a poligamia é apresentada de forma crítica e questionadora, como um aspecto cultural que deve ser problematizado. A autora aborda a prática a partir de uma perspectiva feminina, revelando os sentimentos, reflexões e conflitos das mulheres envolvidas nesta dinâmica. A narrativa destaca a poligamia como uma instituição que, embora arraigada na cultura moçambicana, é contestada por suas implicações morais e éticas, especialmente em relação às mulheres que muitas vezes sofrem marginalização e subjugação devido a essa prática. A protagonista, Rami descobre o fato de seu marido ter várias esposas e passa a questionar essa estrutura, popularizando uma reflexão sobre os valores sociais e culturais em torno da poligamia. Assim, o romance que retrata uma questão bastante debatida e problematizada também nas dinâmicas do lado de cá do nosso ocidente, não a apresenta como uma prática ideal ou aceita, mas sim como um terreno de conflitos, denúncias e resistência, evidenciando a cultura “de margem” que, embora tradicional, também está sujeita à crítica e à transformação social. Ao contornar de cada página do livro, tópicos diversos surgem para debate.
Panoramicamente falando, quais seriam tais tópicos? Destaco-os por aqui, para você, caro leitor, não apenas embasado na leitura individual, mas nas rodas de conversa, nos artigos e reportagens, nas apresentações de trabalhos acadêmicos onde estive na posição de avaliador. Numa observação em painel, o romance nos permite refletir que a literatura de Moçambique reflete problemas resultantes do domínio colonial, racismo, exploração, segregação, revolta e esperança. Paulina Chiziane considera Moçambique um país ainda por ser escrito, indicando a forte presença do país na sua obra. O estudo das identidades culturais instáveis ratifica a importância da obra de Chiziane ao problematizar a tradição poligâmica. Ao lermos Niketche: Uma História de Poligamia, podemos afirmar que a literatura moçambicana abre um campo interpretativo de ampla magnitude por sua riqueza cultural, algo ainda a ser constantemente mapeado na literatura e em todas as artes. Contemplar a escrita de Chiziane é também questionar como nosso olhar pode ser condicionado por entendimentos hegemônicos que não se aplicam totalmente a outras realidades culturais.
Dentre outros pontos que aprecio destacar, em especial, da estrutura narrativa do romance, temos a relação opressiva de Rami com seu marido, António Tomás, explorada por meio de monólogos interiores que expõem suas angústias, a presença de vozes múltiplas na narração, com predomínio da focalização interna, onde os sentimentos da protagonista são colocados em primeiro plano, o uso de tempo verbal no presente contribui para a dinâmica da narrativa, permitindo a imersão nos pensamentos da personagem, além da associação com o gênero Bildungsroman, ampliando suas características ao incluir uma protagonista feminina que enfrenta e desafia as desigualdades sociais e culturais. Neste tipo de enredo, geralmente acompanhamos o processo de desenvolvimento e delineamento dos aspectos formativos de um personagem protagonista, das suas origens ao processo de amadurecimento, numa exploração de suas ramificações morais, psicológicas e sociais ao longo do estabelecimento de sua identidade. Assim, a protagonista tecida por Chiziane lida com os obstáculos das rígidas regras cristalizadas no cotidiano, juntamente com os questionamentos sobre sua condição existencial.
Paulina Chiziane, importante voz da literatura moçambicana, usa seus textos para questionar a imposição cultural do colonizador e focar nos problemas sociais das mulheres africanas. No romance Niketche: Uma História de Poligamia, a protagonista Rami, uma “boa esposa”, busca reconquistar o marido polígamo e questiona o papel da mulher na sociedade moçambicana. Rami dialoga com seu espelho, simbolizando uma busca pela identidade e emancipação, em meio a uma personalidade fragmentada. Isso nos faz lembrar bastante da dinâmica estabelecida no conto da Branca de Neve, massificado pela cultura de massa ao longo do século XX. Num olhar comparativo, já apresentado por alguns interessantes artigos acadêmicos e apresentações orais em eventos da área de Letras e Humanidades onde estive presente, o debate é instigante: enquanto a madrasta do conto em questão é obcecada pela beleza como fonte de poder e reconhecimento, a personagem moçambicana está submetida a uma pressão semelhante, moldada pelas práticas tradicionais e pelo patriarcado, que a fazem enxergar-se de forma negativa e dependente do olhar do outro.
Em síntese, ambas as figuras vivenciam a influência do olhar externo na construção da sua autoestima e identidade, mas na obra de Chiziane há uma crítica a essa dependência, relacionando-a à opressão patriarcal e às construções sociais de feminilidade. Ao comparar a figura feminina do conto dos irmãos Grimm, destacando elementos relacionados ao espelho, à beleza e à convivência com o olhar do outro, podemos interpretar como a cultura local exerce uma forte influência na visão que a protagonista tem de seu corpo, moldando seu olhar através de práticas sociais e culturais específicas do ambiente em que vive. Conforme as descrições da escrita feminista de Chiziane, a sua protagonista encara seu corpo sob a perspectiva da subalternidade, sendo submetida às imposições de uma sociedade patriarcal e de tradições que reforçam a objetificação da mulher. Essas práticas incluem rituais, como o banho com óleos e sebos, além de procedimentos físicos que a tornam uma propriedade a ser herdada e cujo valor está relacionado à sua conformidade com os padrões de beleza impostos socialmente.
Numa escrita envolvente, mas densa para os jovens leitores atuais, desinteressados até mesmo legendas nas redes sociais que tanto acessam, situação que torna o acesso ao livro um desafio, Niketche: Uma História de Poligamia aborda temas como a identidade nacional, vestígios da colonização, a prática de ritos de iniciação, a realidade pós-guerra e o papel social da mulher. A publicação, atualmente presente em vestibulares, é uma demonstração assertiva da literatura de países africanos de língua portuguesa como terreno fértil para análise de diversas questões sociais relacionadas aos desdobramentos seculares de colonização destes territórios. Em sua escrita, Chiziane nos coloca diante de uma personagem que, ao desenvolver uma percepção de si mesma, se percebe influenciada pelo olhar do outro, principalmente do marido, o que reforça sua insegurança e necessidade de aprovação externa. Essa visão é um reflexo das práticas culturais que reforçam a submissão feminina, na qual o corpo é visto como um espaço de controle e domínio, ao invés de um espaço de autonomia individual. Assim, a cultura local, ao cristalizar esses procedimentos e expectativas, condiciona a protagonista a se enxergar de uma forma que reforça sua posição de subordinação e objetificação.
Nesta narrativa que nos apresenta, de maneira reflexiva, uma cultura “de margem”, os acontecimentos ao longo de suas páginas, nos provoca reflexões sobre valores morais e éticos, apontando para uma voz feminina subjugada. Lido numa perspectiva dos estudos culturais, a leitura de Niketche: Uma História de Poligamia nos revela elementos ricos sobre experiências culturais encobertas, especialmente nas literaturas africanas em língua portuguesa. O painel de personagens, vastos, é assertivamente estabelecido para que possamos compreender as ações de quem centraliza a história, isto é, Rami (Rosa Maria) a primeira esposa de Tony e a única legalmente casada com ele, uma figura ficcional feminina de etnia ronga. Tony (António Tomás), um oficial da Polícia (comandante), possui relações com seis mulheres e dezesseis filhos de todas elas: Julieta, Luísa, Saly e Mauá Salé, além das amantes Eva e Gaby. Neste panorâmico cenário de personagens, é relevante também observarmos a presença de Levy, irmão de Tony, homem que vai se mantém presente na vida de protagonista de maneira considerável, após o falecimento de Tony, seu familiar que viveu intensamente o sexo e os relacionamentos.
Em linhas gerais, o romance de Pauline Chiziane reflete o papel daquilo que socialmente seria considerado o comportamento de uma boa esposa, por meio de uma narrativa onde a protagonista vê o próprio corpo e como esse olhar é influenciado pelas práticas sociais e culturais do Moçambique. Dentre seus tópicos temáticos, a composição literária da autora traz a poligamia, destacada no título do livro e analisada como um terreno fértil para análises sob o ponto de vista feminino. É uma leitura que, de dentro de suas propostas reflexivas, tece uma critica a poligamia a partir de dentro da cultura moçambicana, utilizando técnicas literárias para abordar a marginalização da figura feminina. No texto, podemos compreender que a literatura moçambicana centra-se nos problemas do país e contribui para a formação da identidade nacional, bem como reflete problemas resultantes do domínio colonial, racismo, exploração, segregação, revolta e esperança. A escritora, em sua exposição literária, ao utilizar a arte como debate, deixa a entender que considera Moçambique um país ainda por ser escrito, indicando a forte presença deste “espaço” ao longo de cada uma das páginas 336 da publicação.
Niketche: Uma História de Poligamia (Moçambique, 2002)
Autor: Paulina Chiziane
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 336
