Crítica | Nine

por Leonardo Campos
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Em Nine, o cineasta italiano Guido Contini (Daniel Day-Lewis) está com dificuldades em elaborar o roteiro da sua próxima obra, Itália. Passeando pelos bastidores da produção, o musical foca nas dificuldades do diretor em criar, mas também nos expõe a um panorama de situações que geralmente ocorrem na realização de uma obra cinematográfica de grande porte: a contratação de atores, a relação com a mídia e a crítica, o embate com os produtores, a gravitação dos egos, dentre outros temas.

Dirigido por Rob Marshall, de Chicago, o roteiro foi escrito numa parceria com Anthony Minghella, conhecido pelo trabalho em O Paciente Inglês. Na trama, Guido Contini é pressionado pelos problemas pessoais, está com déficit criativo, além de se encontrar às voltas com a crise da meia idade e a várias mulheres com as quais cultiva relacionamentos dos mais diversos. Um dos seus maiores desafios é buscar o equilíbrio entra a esposa (Marion Cotillard), a sua amante (Penélope Cruz), a sua musa no cinema (Nicole Kidman), a sua figurinista e confidente (Judi Dench), uma sensual jornalista de moda (Kate Hudson) e duas personas que habitam o seu imaginário: uma prostituta (Fergie), marco da sua infância, e a sua mãe (Sophia Loren), presença forte no estabelecimento da sua personalidade irreverente e problemática.

Nine abre com um discurso de Guido sobre a fragilidade de ser cineasta. Ele está no interior da Cinecittà, quebrando a cabeça na tentativa de começar a escrever o seu roteiro. Contemplativo, o cineasta-autor medita quando a câmera abre em um grande plano, apresentando a primeira presença feminina a se aproximar. É Claudia (Kidman), a musa inspiradora dos seus principais filmes. Ela o beija e logo se junta a todas as mulheres que demarcam a sua trajetória atual, conflituosa, em um número musical de abertura, oriundo do mundo imaginativo de Guido. Após a breve apresentação, Nine já expõe a tessitura dramática do filme: os problemas criativos de Guido Contini e as mulheres que gravitam em torno deste conflito.

O filme é uma adaptação do musical homônimo da Broadway, de Maury Yeston, obra que homenageia 8 ½  e o diretor Federico Fellini. Em 8 ½ , o personagem Guido Anselmi (Marcello Mastroianni) está esgotado com seu estilo de vida. Ele resolve se internar, refletindo sobre o seu processo criativo. Na época, Fellini contou que sofreu bloqueio criativo, não sendo esta uma prerrogativa dele, já que este efeito é famoso em personalidades que trabalham com produção artística. Ele tinha um contrato e um produtor na sua cola. Estava na Cinecittà e todos o esperavam para realizar um filme. O que as pessoas participantes deste novo projeto não sabiam é que a obra havia fugido do seu alcance.

Os cenários estavam prontos, mas não conseguia encontrar a inspiração para criar a história. Marcelo Mastroianni o perguntava frequentemente sobre o seu personagem. Quando começou a escrever uma carta para o produtor, contando as mazelas da sua fase sem inspiração, foi convidado para o aniversário de um técnico das filmagens.

Ao chegar ao local, foi saudado como mágico e parabenizado por sua nova obra, produção esta que ele sequer havia colocado uma palavra no papel. Fragilizado, Fellini expõe que escutou uma voz baixinha lhe dizendo que a história do seu próximo filme era sobre um escritor que não sabia o que escrever. Essa voz baixa, obviamente, é uma metáfora para o insight que o acometeu naquele evento, abrindo as portas para um das obras mais magnéticas entre público e a crítica presente na sua filmografia: 8 ½.

No livro Ironias da Modernidade, o crítico Arthur Nestrovski aponta que uma das características da arte no século XX é a autorreflexão. Partindo deste pressuposto, lidamos com a metalinguagem, que no senso comum, é a arte falando de si própria. A pintura As Meninas, de Velásquez, o poema O lutador, de Carlos Drummond de Andrade, a canção Não identificado, de Caetano Veloso, e o filme 8 ½ , de Federico Fellini: modelos genuínos de metalinguagem, obras que refletem sobre si.  Em Nine, a reflexão é sobre o discurso cinematográfico, tomando como ponto de partida o universo de Fellini.

Nine nos remete ao cinema italiano em diversos aspectos: as paisagens, os cartazes e o estilo de vida italiano. Filmado nos estúdios Shepperton, em Londres, a abertura nos leva ao interior da Cinecittà, estúdio onde o homenageado da trama, Federico Fellini, filmou quase toda a sua obra, entre estas, A Doce Vida e Cidade das Mulheres. Com o seu carro a passear pelas estradas íngremes de Roma, o roteiro busca capitar uma espécie de “essência” de A Doce Vida, filme que mistura a estética Noir com o expressionismo alemão.  Há um momento do filme em que ele sai com a atriz Cláudia por Roma, culminando na famosa cena da Fontana di Trevi.

O hotel que Guido Contini decide se hospedar para fugir da perseguição da mídia e dos produtores é o mesmo que Fellini utilizou para filmar Amarcord, em 1973. De acordo com dados da pesquisa de Rob Marshall para a realização de Nine, Fellini tinha uma amante na época da sua crise criativa, sendo esta a interprete da personagem Carla, do filme 8 ½ . Em entrevistas, Rob Marshall deixou claro que não era a sua intenção refilmar 8 ½ , de Fellini, obra que, seguindo um padrão aurático do cineasta, é icônica e não possível de ser refeita.

O bilhete de passagem mais relevante para uma introdução à obra de Fellini está na relação entre Claudia e Guido. Após o número musical de abertura, a atriz surge através da lente da câmera do diretor em crise criativa, em um jogo metalinguístico que dialoga com a condição de autorreflexão da obra. Os produtores haviam buscado Guido em seu retiro no hotel, alegando que a atriz estava esperando por ele no estúdio. Claudia questiona a sua função como atriz, afinal, como preparar uma personagem sem saber sequer do que se trata o filme, uma produção de um diretor renomado, mas sem roteiro?

Após realizar estes questionamentos, Claudia decide ir embora, pedindo que os envolvidos entrem em contato quando houver um roteiro para o filme. Guido decide segui-la, coloca-a em seu carro e rumam pelas estradas de Roma e estabelece outro jogo metalinguístico: a relação de ambos é uma metáfora com o envolvimento dos personagens de Anita Ekberg e Marcelo Mastroianni, através da releitura do filme A Doce Vida. Claudia é uma personagem forte porque tem a força de dizer a verdade a ele, sem restrições.

Refletir a metalinguagem em Nine proporciona um caminho didático em duas vias: além de ilustrar os processos criativos do cinema, funciona como uma introdução à Fellini, um dos mais representativos e engajados diretores da história recente do cinema, e de certa forma, ao cinema italiano dos anos 1960. A produção pode não agradar a todos, mas uma coisa é certa: ela homenageia com glamour e carinho à obra de um dos cineastas italianos mais ilustres de todos os tempos, além de ser teórica por refletir o cinema trazendo à tona questões como autoria, a construção de personagens, o debate sobre a mídia e as celebridades, etc.

Para os que pensam no filme como uma imitação, aconselho que repense: Nine é uma homenagem competente, tanto no quesito técnico, como nas atuações esplendorosas do ótimo elenco. Assumidamente relacionado ao mundo de Fellini, a produção está longe de imitar algo, pelo contrário, referencia. Um filme teórico que nos faz pensar a realização cinematográfica. Perde pelo ritmo, mas ganha pela beleza dos enquadramentos, pela direção de arte e pelo envolvimento com questões que definem a indústria cinematográfica.

*Crítica originalmente publicada em 06 de setembro de 2015.

Nine (Nine, EUA/ Itália – 2009)
Direção: Rob Marshall
Roteiro: Anthony Minghella, Michael Tolkin
Elenco: Daniel Day-Lewis, Nicole Kidman, Judi Dench, Sophia Loren, Fergie, Penelope Cruz, Marion Cottilard, Kate Hudson,  Stacey Ferguson
Duração: 118 minutos

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