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Crítica | No Direction Home: Bob Dylan

por Marcelo Sobrinho
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“As únicas pessoas que me interessam são as loucas, aquelas que são loucas por viver, loucas por falar, loucas por serem salvas; as que desejam tudo ao mesmo tempo. As que nunca bocejam ou dizem algo desinteressante, mas que queimam e brilham, brilham, brilham como luminosos fogos de artifícios cruzando o céu.”  – Jack Kerouac, em On the Road

Quase três horas e meia de projeção seriam suficientes para cobrir toda a carreira de um astro da estatura de Bob Dylan? Assistindo ao documentário de Martin ScorseseNo Direction Home: Bob Dylan –, a impressão que se tem é de que a complexidade da vida e da produção de um dos maiores artistas do último século exigiriam muito mais. O que o prestigiado diretor norte-americano (fã confesso de rock e que sempre se debruçou sobre as grandes figuras do gênero como documentarista) faz é utilizar um recorte dos primeiros cinco anos de carreira para estudar a figura de Dylan: altiva, contraditória (e sem qualquer medo de ser) e sempre em ebulição. Cobrindo a vida e a obra do cantor entre 1961 e 1966, Scorsese conseguiu compor talvez o mais empolgante e complexo retrato da personalidade de Bob Dylan que o cinema já viu.

A introdução de No Direction Home: Bob Dylan (título que representa tão bem a essência do próprio documentário) desvela claramente o tipo de artista do qual tratará. Dylan, já nos dias atuais, surge exprimindo em uma entrevista o que exprimirá logo em seguida pelos versos de Like a Rolling Stone, que ele surge cantando em primeiro plano quase quarenta anos antes. “How does it feel?/to be on your own/with no direction home/like a rolling stone” é o que ele canta e também a síntese da figura que Scorsese construirá ao longo da obra. O cantor de folk, que produzira grandes hinos de protesto (como Blowing in the Wind e A Hard Rain’s A-Gonna Fall) não recua diante do público que o amava dois anos antes, enquanto artista em ascensão, mas agora o bombardeia com vaias seguidas nos shows em 1966. O motivo? Dylan não se conformava em ser apenas um exitoso cantor de protesto – um rebento de Woody Guthrie e seu folk rebelde e que disparava sem parar contra o status quo. Ainda que o protagonista tivesse realmente se encantado por Woody e reconheça abertamente nele uma de suas principais influências de toda a vida.

Mas ser somente um cantor de protesto não seria a residência definitiva de Dylan. Seus passos não rumariam de volta para casa, como ele diz em seu grande sucesso. O documentário foi devidamente dividido por Scorsese em duas partes. Na primeira, ergue-se um panorama biográfico geral sobre o músico, desde a juventude em Minnesota, quando vagava anônimo com sua guitarra e sua harmônica, ansioso por simplesmente tocar onde quer que pudesse, à sua ascensão no Greenwich Village e sua transformação a partir de 1966 em um astro de alcance mundial (sem se ater a essa fase, contudo). Suas influências e o círculo artístico que o rodeava são bem explorados nessa parte. Influências de nomes como Pete Seeger e do movimento beatnik sobre sua obra são trazidas à baila muito claramente. Entrevistas de artistas que com ele conviveram (como Liam Clancy, Joan Baez e Maria Muldaur) e da ex namorada Suze Rotolo ajudam a fechar uma perspectiva global sobre o artista nos primeiros anos de carreira.

Já na segunda parte, Scorsese aborda a grande virada artística de Bob Dylan, deixando o folk acústico que o consagrara para se tornar elétrico e tocar com a The Band. Dylan não deixa de escrever sobre a miséria humana e a situação social daqueles dias de guerra no Vietnã – é o que ele faz, por exemplo, em Subterranean Homesick Blues. Mas sua mudança de concepção musical e sua recusa pública de continuar sendo “a grande voz de protesto contra a guerra” evidentemente irritava o público, que gritava “Judas! Judas!”. Suas letras agora mais divagariam sobre a existência e sobre seus próprios demônios do que pretenderiam levantar bandeiras úteis ou fazer panfletos escancarados. Dylan compreende que seu caminho, ainda que longo, tortuoso e algo perdido, não poderia se circunscrever a um determinado tempo ou uma determinada causa.  Tal como o jovem, o Dylan convertido em astro apenas ansiava por tocar onde quer que fosse, sem estar a serviço de nada. Apenas de sua própria música. A montagem de No Direction Home: Bob Dylan é primorosa ao fazer uma extensa colagem de cenas e entrevistas que fiam tão bem essa ideia. E tudo, claro, maravilhosamente pontuado pela música do próprio astro.

O documentário não dá conta das fases posteriores da carreira do músico norte-americano. Sua produção com a The Band e sua vida após se tornar artista elétrico não são o mote aqui. O que Martin Scorsese elucida é mais o caráter e a alma do artista. Do homem que amou a música desde menino e continuou a amá-la do mesmo modo nos anos de estrelato. Do músico que encarnou a militância política em suas letras, em um dos períodos mais críticos da história norte-americana no século XX, ao compositor que se rebelou contra a dominação de outros sobre o seu próprio fazer artístico. De um autêntico nômade musical ao homem que tinha medo de não chegar em casa após um vôo pelo Tennessee. Em busca de um rumo e sem medo de nunca o encontrar.

Like a complete unknown.

Like a rolling stone.

No Direction Home: Bob Dylan (EUA – 2005)
Direção: Martin Scorsese
Elenco: Bob Dylan, Joan Baez, John Coen, Allen Ginsberg, Mickey Jones, D.A. Pennebaker, Woody Guthrie
Duração: 301 minutos.

 

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