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Crítica | Noite de Lobos

por Ritter Fan
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Depois de mostrar a que veio com os imperfeitos, mas decididamente perturbadores Ruína Azul e Sala Verde, Jeremy Saulnier volta em uma produção mais madura, mais contemplativa, mas não menos violenta. Noite de Lobos, que o Netflix comprou para distribuição exclusiva antes mesmo da fotografia principal começar e que teve sua première no Festival de Toronto de 2018, quase que literaliza a famosa frase hobbesiana “o homem é o lobo do homem” ao colocar um especialista em comportamento lupino em meio a uma situação muito mais complexa que poderia imaginar.

Jeffrey Wright, o Bernard de Westworld, vive o referido especialista – e autor de um livro sobre a vida entre lobos – que responde a uma carta desesperada de Medora Slone (Riley Keough), moradora de um vilarejo perdido no Alasca, pedindo sua ajuda para caçar o lobo que, três dias antes, levara Bailey (Beckham Crawford), seu filho de apenas seis anos. Ela não tem esperanças de encontrar o menino vivo, mas precisa ter “algo” para dar ao marido que está lotado no Iraque (Alexander Skarsgård) e ainda não sabe do ocorrido. Essa é a premissa, mas o filme é bem mais do que apenas isso e contar detalhes do que acontece pode reduzir a experiência de quem ainda não viu, pelo que elegi escrever o mínimo possível sobre a trama.

O que realmente importa, porém, é notar como o roteiro de Macon Blair, com base em romance de William Giraldi, estabelece uma jornada pela escuridão da alma humana que não é muito diferente da empreendida por Willard em Apocalypse Now (ou, talvez mais precisamente, por Marlowe em Coração das Trevas, a obra que inspirou Coppola). Não quero dizer, claro, que é possível comparar-se qualitativamente os dois filmes, mas sim que há uma ressonância temática muito interessante, que resvala naquele mesmo lado místico e sobrenatural que permeia a figura do Coronel Kurtz, mesmo que Blair peque por enxertar alguns textos expositivos aqui e ali para reiterar momentos óbvios, com o que representa a sequência em que vemos uma matilha refestelando-se. A vida dura, fria e escura do interior do Alasca oprime seus moradores, apagam qualquer fio de esperança e o que vem é a volta à barbárie, estado que, defendem alguns, é o normal da raça humana.

E é isso que vemos logo com a chegada de Russell Core (Wright) à cabana de Medora, com diálogos sussurrados, uma escuridão que desnorteia e uma ambientação corroída, decadente, mas com um belo e assustador verniz de misticismo, ainda que o lado sobrenatural seja apenas algo que é bem pincelado bem de leve. O espectador entende de imediato, nesses 30 ou 40 minutos iniciais, que há algo de errado ali no vilarejo e com Medora em particular, que a caçada ao lobo que levou Bailey talvez seja um grito mudo de socorro, algo para o que não se espera uma solução ou mesmo que exija a exata compreensão do que está acontecendo.

Nesse mesmo espaço de tempo, somos levados para o Iraque e vemos Vernon (Skarsgård em um papel intenso, talvez seu melhor até agora), o pai, em ação massacrante por lá. É um desvio narrativo ao mesmo tempo supérfluo e interessante, servindo como um aviso premonitório do que acontecerá quando ele, inevitavelmente, voltar para o Alasca. É essa sua volta que, claro, marca a virada narrativa completa, com Core como um personagem muito mais passivo, como um observador, do que talvez fosse o esperado, mas que traz a oportunidade para Wright brilhar na composição do estudioso comportamental vivendo quase que um experimento antropológico primal.

O filme depende de diversas sequências feitas para pegar o espectador de surpresa pela sua brutalidade de um lado e por sua estranha beleza estética do outro, com planos gerais que aproveitam muito bem a paisagem desolada canadense que fez as vezes de Alasca intercaladas com planos americanos e close-ups desconcertantes, feitos para incomodar e uma fotografia de tonalidade azul, que, mesmo mostrando a beleza potencial do local, está mais interessada em sua podridão, ou seja, ela olha muito mais para dentro de nós mesmos do que para fora. Não é exatamente um filme do Homem vs. Natureza, como muitos dizem por aí, pois a pegada hobbesiana com que abri a crítica é muito mais presente.

Basta ver, por exemplo, a longa e angustiante sequência na cabana de Cheeon (Julian Black Antelope), melhor amigo de Vernon que também perdera um filho para lobos. Ali, o exagero impera e isso pode trazer estranhamento ao espectador em razão da quase inexistente construção desse personagem em particular. Mas Cheeon representa a mais completa desolação, um homem – um nativo do lugar – que perdeu seu futuro e que, agora, nada mais tem a perder e isso é o bastante para entendermos o que ele faz, algo de onde Saulnier extrai uma teatralidade dantesca, tendo novamente Core como um espectador impotente e o chefe de polícia Donald Marium (James Badge Dale, em outra atuação desesperançosa, mas belíssima) como alguém tentando evitar – ou atrasar – o caos.

Noite de Lobos não é exatamente uma surpresa. Ao contrário até, é um claro sinal do amadurecimento de um diretor que promete muita coisa boa em sua carreira ainda relativamente no começo. Não é, porém, um filme agradável ou fácil de se ver. Ao desnudar nossa natureza, ele nos olha no rosto desafiando-nos a dizer que não é bem assim, que não somos daquele jeito. Mas somos sim, podem ter certeza.

Noite de Lobos (Hold the Dark, EUA – 29 de setembro de 2018)
Direção: Jeremy Saulnier
Roteiro: Macon Blair (baseado em romance de William Giraldi)
Elenco: Jeffrey Wright, Alexander Skarsgård, Riley Keough, James Badge Dale, Macon Blair, Julian Black Antelope, Beckham Crawford
Duração: 125 min.

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