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Crítica | Noite de Reis ou O Que Quiserem

por Luiz Santiago
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estrelas 3,5

Embora não seja tão engenhosa e intricada quanto A Comédia dos Erros, até porque é “filha” desta, no sentido cronológico, Noite de Reis é mais uma prova da competência de Shakespeare em lidar com temas como o amor, a troca de identidades e o comportamento humano em momentos de crise. Trazendo os mesmo ingrediente da comédia ácida que permeou a trama dos Drômios e Antífolos de Éfeso e Siracusa, o bardo mais uma vez tomou como base um conto de sua época, Of Apollonius and Silla, escrito por Barnabe Rich, e criou uma história de forte tendência musical e, de maneira inédita, deixando claras as falhas e fraquezas do comportamento masculino.

O exercício, no entanto, não era novo. Shakespeare já havia colocado a força da mulher sobre o homem, ao menos em termos, em trechos de A Megera Domada, mas em Noite de Reis o dramaturgo realmente dá um grande destaque, força e superioridade intelectual à mulher, desnudando a personagem do Duque Orsino e de outros homens da peça, trabalhando uma situação de amplo conhecimento popular: os homens tendem a ser terrivelmente fracos e inconsequentes quando se trata de paixões arrasadoras.

A história de Noite de Reis acontece na Ilíria, local já citado anteriormente na obra de Shakespeare, pelos piratas de Henrique VI – Parte 2, mas nunca antes trabalhada como espaço central de uma de suas tramas.

Após um naufrágio, os gêmeos Sebastian e Viola se separam, um acreditando que o outro está morto. Viola se disfarça de homem e passa a servir o Duque de Orsino, sob o nome de Cesario. O Duque encarrega Cesario de ser o porta-voz entre ele e Olivia, uma Condessa órfã com um estranho voto de luto pelo irmão morto. Essa ciranda de relacionamentos é engrossada por personagens caricatos como o tio de Olivia, o servo Malvolio e a serva Maria, ambos com um papel muito importante no desenvolver do corpo cômico da história.

A adaptação feita pelo diretor britânico Trevor Nunn captura muitíssimo bem a ideia geral da peça, inclusive em seus pontos mais fracos, infelizmente. Sua releitura não modifica as principais ações da obra, mas realoca as personagens num ambiente cortês, onde a história tem lugar. O problema da introdução e a transformação de Viola em Cesario, no início, são resolvidos rapidamente, embora com indicações que não servem para absolutamente nada na história, como descrições da situação política da Ilíria. Para quem não conhece a peça, essa primeira parte pode parecer confusa, mas em pouco tempo o contexto geral da história nos é oferecido e a comédia literalmente começa.

Por contar com um elenco talentoso, o diretor não teve dificuldades em criar nichos bem seguros de ação para cada “ato” e de maneira muito inteligente, entrelaçou um ponto a outro da narrativa, uma característica que não faz parte da peça (não do modo como está no filme), mas que deu o tom especial de narrativa complexa às ações isoladas da película, complementando de maneira ideal o que o bardo escreveu. A cena em que temos Feste conversando com Malvolio sobre a loucura deste último e a montagem paralela para outras sequências onde a loucura também é o tema de destaque é um dos melhores exemplos.

Imogen Stubbs como Viola é o principal destaque do filme. A atriz consegue construir uma postura visivelmente masculina, porém tenra, quase imberbe e delicada, que mantém com segurança até a revelação definitiva, na penúltima sequência. Sem engrossar a voz ou exagerar na caracterização, a atriz logrou uma representação notável, que se completa quando Steven Mackintosh, que interpreta Sebastian, entra em cena, e o encontro entre os dois irmãos acontece. Além de ser uma cena bastante emotiva, é um ponto essencial para a obra, que só irá resolver o caso de Malvolio, para em seguida erguer o seu final feliz.

Infelizmente a finalização de Noite de Reis (tanto o filme quanto a peça), deixa a desejar. Trevor Nunn apostou no canto-solilóquio de Feste para o fechamento da obra, um erro que coroa o exagero no tom de comédia romântica que embala a descoberta dos verdadeiros papéis, naquela que se caracteriza como a última parte importante da peça.

Há também uma desaceleração abrupta na narrativa, mesmo considerando que as histórias individuais/de grupo tenham sido montadas compassadamente até aquele ponto da história. O final também ressalta o pouco conforto de Ben Kingsley no papel de Feste, que mesmo não fazendo um trabalho ruim, não alcança um nível admirável, diferença grande para com outro personagem secundário da obra, Sir Andrew, vivido por Richard E. Grant, que, além de ser muito engraçado, está bem localizado no roteiro e tem sua entrada e saída realizadas em tempo ideal.

Noite de Reis é um filme gracioso e que acerta a maior parte do tempo, mas cujo final incomoda bastante. Talvez haja um pouco de implicância minha para com esse término da obra, mas como eu já deixei claro, é um desgosto que vem da peça, portanto, como o filme vai pelo mesmo caminho, era natural que essa opinião se repetisse. Contudo, admiro o trabalho de Trevor Nunn nessa adaptação e certamente indico para quem quiser uma sessão de uma comédia inteligente sobre troca de identidades, crossdressing, amores não correspondidos e final feliz. Não é a melhor comédia de Shakespeare, mas é uma boa comédia e adaptada aqui com razoável brilhantismo.

Noite de Reis ou O Que Quiserem (Twelfth Night or What You Will) – UK/Irlanda/EUA, 1996
Direção:
Trevor Nunn
Roteiro: Trevor Nunn (baseado na obra de William Shakespeare)
Elenco: Imogen Stubbs, Steven Mackintosh, Nicholas Farrell, Sidney Livingstone, Ben Kingsley, James Walker, Helena Bonham Carter, Nigel Hawthorne, Mel Smith, Imelda Staunton, Toby Stephens, Richard E. Grant
Duração: 134 min.

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