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Crítica | Noite de Seresta

por Michel Gutwilen
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Em oportunidades anteriores, eu já disse em críticas que o Cinema não tem nenhuma “função”, obrigatoriamente, principalmente no que se refere ao social. O cinema deve ser apenas Belo (partindo da noção de Kant). Belo em sua inutilidade ou em sua utilidade. Mas certos filmes, como é o caso de Noite de Seresta, acabam sendo muito belos justamente porque entendemos como diretor usa da narrativa fílmica para alterar a própria realidade. 

Para explicar melhor, vamos ao resumo deste curta de vinte minutos: o foco da narrativa é uma cantora de karaokê, Kátia. A ambientação se passa em um lugar humilde, como as imagens deixam claro, e, a bem da verdade, não se trata de uma “excelente” cantora. Então, por que ela é o foco desse projeto? Justamente por sonhar em ser uma estrela, em amar aquilo que faz, se desligar do mundo enquanto canta e aqueles breves minutos serem momentos de escapismo, de fuga da dura realidade física. Ou seja, o cantar como uma paixão e como um estado onírico. 

Seja por suas impossibilidades financeiras, por suas “deficiências” técnicas ou até por sua idade, Kátia nunca irá sair daquele lugar em que canta karaokê. O máximo que conseguirá chegar. Pois eis que surge a magia do Cinema. Só o fato de já existir um documentário sobre esta mulher, já é uma realização do seu sonho, de virar uma estrela, uma protagonista, a visibilidade tão almejada. Porém, não se trata de um cinema apenas de “intenções”, pois nenhuma arte se basta nisso, mas nas próprias escolhas estéticas da dupla Sávio Fernandes e Muniz Filho.

Depois de ambientada a realidade física de Kátia, os diretores partem para enormes sequências de liberdade poética. O que mais se destaca é o uso do chroma key. Alguns até podem achar brega, mas o brega já existe na própria essência do karaokê, então faz sentido. O que acontece, imageticamente, é que, conforme canta, Katia vai sendo projetada em diversos ambientes como uma cidade grande ou o céu. Aliás, ela é literalmente aumentada, em consonância com o que é cantado em uma música. A soma dessa escolha de direção com a própria paixão física da protagonista pela sua cantoria elevam todos esses momentos para uma um estado quase que espiritual, a um nível superior. É a total liberdade e autonomia do Cinema em dar a chance de sua protagonista ser alguém. De mesmo modo, até no mundo real, a opção por uma iluminação estourada, vindo da janela ao fundo de Kátia, também remete a este mesmo sentimento. 

É um rápido plano, mas, em um certo momento, os diretores captam o que parece ser o menu de um DVD de karaoke, onde está escrito: “O artista é você. Escolha você a canção”. E essa frase parece ser precisa como um bom resumo de Noite de Seresta. Ao fim, em sua sequência final, o filme parece muito consciente de sua protagonista: ela está bêbada, quase caindo, obviamente cantando mal, mas está cantando a música O Que É, O Que É?, de Gonzaguinha. Segue um trecho, para reflexão/compreensão: “Viver! E não ter a vergonha de ser feliz, cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Ah meu Deus! Eu sei, que a vida devia ser bem melhor e será, mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita”. É exatamente sobre isso do que essa obra se trata. Ter paixão, não desistir, seguir sonhando e cantando, mesmo que diante das dificuldades. Trata-se de um dos filmes mais belos, emocionantes e honestos do ano.

Noite de Seresta (Brasil, 2020)
Direção: Sávio Fernandes, Muniz Filho
Roteiro: Sávio Fernandes
Elenco: Kátia Blander
Duração: 19 mins

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