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Crítica | Noite Passada em Soho

O glamour de um passado perigoso.

por Luiz Santiago
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Noite Passada em Soho tem uma das sequências abertura mais divertidas e fascinantes de 2021. O diretor Edgar Wright — aqui também responsável pelo roteiro, ao lado de Krysty Wilson-Cairns –, estabelece de cara o “show dentro do show“, abrindo nos primeiríssimos minutos a primeira de muitas veias interpretativas sobre o filme. Em linhas gerais, o espectador está vendo uma miríade de representações… o que vai mudar em relação a elas é o caráter. Pode-se ver um exercício metalinguístico de representação; um exercício psicológico ancorado no trauma; um exercício onírico ou metafórico/simbólico; e ainda, um exercício sobrenatural — linha que, quer o o espectador adote ou não para interpretar a fita, terá grande peso à medida que o desenvolvimento das personagens acontece e o dilema em torno dessas representações ganha peso.

Não há espaço para o trivial no primeiro ato. O refinamento do diretor chegou a tal nível, que elementos básicos de sua assinatura como o desenho sonoro quase neurótico de tão detalhista e perfeitamente alinhado com uma montagem rápida, sugestiva, intelectual, já surgem nas alturas. Penso que isso ocorre porque o roteiro não quer racionalizar a ação que se desenvolve na tela. Em um primeiro momento, vemos a inocência personificada em Eloise (Thomasin McKenzie), garota sonhadora do interior do Reino Unido que vai a Londres cursar moda. Esse deslocamento de uma jovem para um espaço educacional que se torna um espaço corruptor, perturbador e letal bebe atmosfericamente em fonte recente (o Suspiria de Luca Guadagnino), inclusive fazendo deliciosas referências estilísticas ao gênero que tempera esta fonte: o giallo.

Mas é mesmo no terror britânico clássico e muito diretamente nos filmes A Tortura do Medo (1960), Repulsa ao Sexo (1965) e Inverno de Sangue em Veneza (1973) que Noite Passada em Soho finca suas raízes, contando uma história de perda da inocência a partir de um apodrecimento do sonho de uma jovem: o glamour que Eloise vê na Londres dos anos 1960 vai se tornar para ela um verdadeiro inferno. Essa mudança de percepção ocorre numa fusão dramática entre a realidade que ela vive e a realidade (ou qualquer outra coisa que caracterize o que ela vê) de seus desejos inocentes, levando-a a conhecer Sandie (Anya Taylor-Joy), uma jovem também sonhadora que procura tornar-se cantora em Londres. A condição de vida dessas duas mulheres se entrelaçam pouco a pouco, com o sonho de cada uma sendo substituído por um ato de violência que a direção maximiza na segunda parte do filme.

Como as duas atrizes principais (e vale também o destaque para a icônica Diana Rigg, em seu último papel no cinema e para quem o filme é dedicado) estão aplaudíveis em seus papéis, não há qualquer dificuldade de estabelecimento dramático para essas realidades (o presente e o passado), uma vez que McKenzie e Taylor-Joy encarnam de modo muito bem afiado as nuances de felicidade, feminilidade, decadência, medo e desespero que marcam a vida dessas mulheres em suas respectivas sociedades. As chagas de um tempo, porém, afetam outro, e Eloise vai se desviando de sua visão paradisíaca sobre o passado e acaba vendo nele, no próprio ato de dormir ou de voltar para casa, uma ameaça, uma porta aberta para o pesadelo. Para essas duas mulheres, muitas coisas vão sendo negadas e as armas com que elas lutam acabam definindo a personalidade por trás da máscara de “boa menina“, momento no qual o filme adentra ao território macabro, onde permanece praticamente até o fim.

Como se ergue sob um enigma rico e inteligente, o longa força as nossas expectativas para o mais alto patamar, vendo um desfile de ótimos figurinos, ouvindo uma ótima seleção de canções ou atentando para um drama cada vez mais labiríntico. E é aí onde passamos a nos decepcionar com as resoluções de Wright para o desfecho. Um primeiro problema que vejo nesse sentido é o exagero de cenas com os “homens fantasmas“, representando o motivo da dor de Sandie e uma perseguição a Eloise que, apenas no clímax, terá a sua verdadeira intenção revelada. Quando aparecem pela primeira vez e até nos primeiros usos dessas sombras, temos uma ótima abertura para o terror, mas à medida que mais e mais desse mesmo tipo de aparição medonha surge na tela, seu efeito é menos impactante e simplesmente passa a atrapalhar. O segundo problema é a mudança de tom de abordagem, quando o filme sai de sua esfera enigmática para transformar-se em um suspense investigativo, com a resolução entregue de maneira procedimental — abordagem que cabe a dramas policiais como Entre Facas e Segredos (só para citar algo de uma safra próxima a Soho), mas que aqui termina descaracterizando o que se construíra até então.

SPOILERS!

Uma das minhas preocupações em relação a esta obra (especialmente depois de saber que não seria Bill Pope, o responsável) era como a fotografia faria a necessária passagem de ambientes, destacando o neon e mantendo sólidas as manipulações de emoção através de explosões de cor, uma das marcas do cinema de Wright. Nas mãos de Chung-hoon Chung (Oldboy, A Criada), porém, o setor acabou sendo um dos mais redondinhos da película, até mesmo quando a obra começou a apresentar problemas. Tanto o contexto estético que enquadra e mergulha as personagens em diferentes cores quanto o marcante trabalho com espelhos e com a perspectiva de ação dos indivíduos funciona do início ao fim, e destaco o momento de abertura do longa, o momento da “morte de Sandie” pelas mãos de Jack (Matt Smith) e o encontro final entre as duas realidades, na escadaria da casa, durante o clímax sob o fogo.

Noite Passada em Soho é uma espécie de sonho acordado, algo como uma vivência físico-psíquica de uma realidade passada e admirada por uma garota inocente que se vê jogada num ambiente cosmopolita cheio de perigos. Em sua primeira metade, a obra mostra um Edgar Wright mais maduro, ciente do que consegue fazer dentro de seu estilo e criando algo muito interessante, um quebra-cabeça que abre diversas possibilidades de interpretação. Quando a poeira começa abaixar e as coisas são conectadas e arrumadas para o fim, o diretor posiciona sua obra num patamar bastante convencional, de certa forma descaracterizando o que ergueu com tanto apuro. E a narrativa que poderia constar (em alto posto) como uma das melhores do ano, acaba caindo algumas posições por sacrificar-se ao convencional, o que não é pouca coisa, negativamente falando, considerando um diretor do porte de Edgar Wright e o nível de excelência a que ele chegou em sua carreira.

Noite Passada em Soho (Last Night in Soho) — Reino Unido, EUA, China, 2021
Direção: Edgar Wright
Roteiro: Edgar Wright, Krysty Wilson-Cairns
Elenco: Thomasin McKenzie, Aimee Cassettari, Rita Tushingham, Colin Mace, Michael Ajao, Synnove Karlsen, Jessie Mei Li, Kassius Nelson, Rebecca Harrod, Alan Mahon, Connor Calland, Pauline McLynn, Josh Zaré, Terence Stamp, Jacqui-Lee Pryce, Elizabeth Berrington, Diana Rigg, James Phelps, Oliver Phelps, Anya Taylor-Joy, Beth Singh, Matt Smith
Duração: 116 min.

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