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Crítica | Noites de Cabíria

por Ritter Fan
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Fundamentalmente, Noites de Cabíria é um filme sobre esperança. Quando foi filmado, a Itália tinha saído havia apenas 12 anos da Segunda Guerra Mundial e ainda tinha um gigantesco caminho para se livrar do nefasto legado de Mussolini e de seus amigos fascistas e nazistas. A miséria total estava em todo o lugar e o abismo entre os miseráveis e os mais abastados era gritante. O povo estava desesperançoso, juntando os cacos de suas vidas.

Federico Fellini levou seu segundo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro com Cabíria e sua esposa, Giulietta Masina, no papel principal, amealhou mais do que merecidamente o prêmio de melhor atriz em Cannes. E, por incrível que pareça, mesmo hoje em dia esse é um dos filmes de Fellini mais desconhecidos. Talvez porque ele tenha precedido La Dolce Vita, que trabalha novamente muitos dos mesmos temas e por ser a obra pela qual qualquer um conecta com o diretor, mesmo aqueles que jamais a assistiram.

Seja como for, o reconhecimento à época da qualidade da fita é certamente fruto da compreensão do que ele significou para o movimento neorrealista e para a Itália como um todo. É um hino que prega que, por mais que você tenha sido chutado, massacrado e violentado, ainda é possível se reerguer. Se não é isso que o sorriso de Cabíria ao final da projeção significa, então não sei mais o que pode ser.

Reprisando seu breve papel de Abismo de um Sonho, Giulietta Masina vive a prostituta Cabíria, muito orgulhosa de ter sua casa própria (nada mais do que um bloco de cimento com janelas em uma região árida fora do centro de Roma) e capaz de encontrar felicidade nas pequenas coisas. Quando a vemos em Noites de Cabíria é dia, e ela, com uma roupa listrada que a faz parecer uma arlequina (e que repetiria várias vezes ao longo da fita, de formas diferentes), está com seu namorado, beijando-o alegremente à beira do rio. No momento seguinte, porém, esse mesmo romântico namoro acaba com o homem jogando-a na água e roubando sua bolsa com 40 mil liras.

Sem saber nadar, Cabíria quase morre afogada, mas é salva pelos esforços de algumas crianças e de um homem que faz o mais atrapalhado primeiros socorros que já vi. Quando ela se recupera, sai esbravejando para casa, mas sem ainda acreditar de verdade no que acontecera. Ao chegar, sua amiga Vanda (Franca Marzi) não tem dúvidas sobre o ocorrido e, quando Cabíria incredulamente pergunta “quem faria isso por 40 mil liras?”, ela cinicamente responde que “fariam por cinco mil”. Fellini não deixa dúvidas sobre que tipo de pessoa Cabíria é e em que tipo de ambiente ela vive. É, novamente, a oposição do sonho e da realidade, do mesmo jeito que vemos em Abismo de um Sonho.

A partir daí, Fellini passa a usar uma estrutura episódica para falar da vida de sua personagem. Ele mostra suas noites e seus dias sem necessariamente que, à primeira vista, um “capítulo” tenha ligação com o outro. Mas é só mesmo à primeira vista. Afinal de contas, apesar do diretor, a partir do filme seguinte, se preocupar mais com temas do que com a linearidade de um roteiro, o fato é que os capítulos de Noites de Cabíria, pinçados de sua vida como prostituta – mas sem jamais julgá-la – permitem ao espectador ter um entendimento completo sobre ela, sobre a Itália e, em última análise, sobre seu destino.

É o que vemos logo no momento seguinte, quando Cabíria está do lado de fora de uma boate sofisticada e tem que lidar com o carrancudo segurança. Ela acaba vendo a briga entre um ator famoso, Alberto Lazzari (Amedeo Nazzari) e sua namorada Jessy (Dorian Gray) e, no calor do momento, ele a chama para entrar no seu carro, a leva para outra boate e, depois, para sua suntuosíssima mansão. Cabíria sente-se grata somente por estar ao lado de um ator famoso, ao ponto de pedir uma foto dele com autógrafo personalizado para poder mostrar para suas amigas que certamente não acreditarão nela. Vemos a mansão em detalhes, com viveiro de pássaros, uma escadaria com mais janelas do que muito prédio e uma suíte com closet com portas elétricas. É tudo aquilo que Cabíria jamais poderia sonhar em ter. Mas o que ela mais quer é ser amada, ser apreciada e é por isso que ela está feliz naquele momento, somente para ter sua felicidade roubada (novamente) pela chegada intempestiva de Jessy, o que a faz ter que dormir no banheiro, junto com o cachorro de Lazzari. O rosto dela de tristeza ao sair de lá e passar pela cama com Jessy dormindo é de trincar o coração.

O que poderia parecer uma sequência solta é imediatamente contrastada com o outro lado da moeda, quando Cabíria, voltando a pé de um cliente, passa por uma região onde miseráveis dormem em cavernas e são ajudados por um bom samaritano. Vemos, então, gente em pior situação do que Cabíria. Gente que não só não tem amor, como não tem esperança.

Mas é mesmo no episódio em que Cabíria entra em um teatro de variedades e assiste a um show de mágica que Fellini mistura realidade com sonho de maneira mais profunda e tocante. Sendo convocada para o palco, a simpática “mulher da vida” entra em um transe hipnótico que revela o que ela verdadeiramente quer na vida: ser feliz, ser amada incondicionalmente. Se até esse momento o espectador ainda não tiver se apaixonado pela atuação de Masina, a partir dele não sairá mais o mesmo da projeção. De prostituta sonhadora, mas suficientemente esperta para distanciá-la do papel de inocente útil de A Estrada da Vida, vemos Cabíria transformar-se em uma princesa que vive em um mundo de faz-de-conta. O lirismo da cena – toda ela filmada efetivamente em um palco dando mais ênfase ainda à irrealidade do que vemos – é absolutamente tocante.

E essa beleza toda é destruída pela entrada de Oscar d’Onofrio (François Périer) na trama, entrada essa que é particularmente provocadora, pois ocorre após Cabíria pedir para uma santa em uma procissão para mudar de vida. Não tentarei aqui omitir informações em razões de eventuais spoilers, pois esse filme não é sobre isso e o destino de Cabíria já nos é revelado nos primeiros minutos da fita. D’Onofrio passa a cortejar nossa heroína e nossa angústia aumenta, pois sabemos exatamente quem ele é e, de certa forma, nem podemos culpá-lo por ser assim. Fellini manipula o espectador sem no entanto enganá-lo ou a qualquer momento querer fazer um “final surpresa”. É nessa direção que Noites de Cabíria naturalmente vai, mas nós não queremos mesmo acreditar. Sabemos que é um tragédia anunciada e mesmo assim embarcamos na viagem na esperança de que estejamos errados. Ora, mas não é isso que Cabíria também faz?

Só que, mesmo depois de tudo que Cabíria passa, quando ela não é mais do que uma miserável que provavelmente terá que viver em uma das cavernas que ela testemunha mais cedo, seu sorriso enternecedor volta encerrando esse que talvez seja um dos filmes mais bonitos já feitos. A arlequina retorna e nossos corações enchem-se de esperança. Os créditos sobem juntamente com nossos espíritos.

  • Crítica originalmente publicada em 16 de junho de 2016. Revisada para republicação em 02/03/2020, como parte da versão definitiva do Especial Federico Fellini aqui no Plano Crítico.

Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria, Itália, 1957)
Direção: Federico Fellini
Roteiro: Pier Paolo Pasolini, Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tullio Pinelli
Elenco: Giulietta Masina, François Périer, Franca Marzi, Dorian Gray, Aldo Silvani, Amedeo Nazzari
Duração: 113 min.

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