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Crítica | Noites de Circo

por Luiz Santiago
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Extremamente mal recebido pela crítica e pelo público sueco (mas com boa recepção fora do país) Noites de Circo (1953) é um estudo dos laços e desejos humanos e da condição do artista. Bergman buscou elementos pessoais, especialmente entre a infância e juventude, para trabalhar as relações marcadas por algum tipo de poder pessoal entre os indivíduos, onde não apenas a condição social diferente é exposta como motivo de orgulho para um e de desejo para outro. Estão em pauta também os desejos pessoais (a soltura ou repressão da libido são dois dilemas de impacto social que visitam os personagens, especialmente as mulheres), a difícil relação com a família, o adultério e o exercício da arte a partir de uma visão hierárquica.

Dois diretores de fotografia trabalharam no filme. O primeiro foi Hilding Bladh, que precisou se afastar por conflito de agenda, já que o período de filmagens durou de fevereiro a junho de 1953 e contou com um longo período de filmagens em locação, exigindo que a equipe convivesse junto, como uma trupe circense, durante boa parte do tempo. O segundo fotógrafo foi um aluno de Bladh chamado Sven Nykvist, que realizava aqui a sua primeira parceria com Bergman, que se firmaria de verdade a partir de A Fonte da Donzela e seguiria até meados da década de 80, terminando em Depois do Ensaio.

Através da fotografia, dos figurinos e das escolhas da direção de arte, o espectador tem uma série de dúvidas iniciais sobre o tempo e o espaço em que Noites de Circo se passa. A bela imagem inicial das carroças com as lonas, os animais e os artistas passando por uma ponte, vistas em um grande plano geral cheio de contraste de luz, fazem da caravana uma espécie de comboio fantasma. É aí que estacionamos para acompanhar a ação de um único dia na vida de Albert Johansson (Åke Grönberg, em uma interpretação extremamente emotiva) e seu circo, que chega debaixo de chuva à antiga cidade do protagonista, onde ele tem dois filhos que não vê há três anos. Todo o início da obra é uma magistral caminha de apresentações temáticas e simbólicas, contanto inclusive com um famoso flashback, onde um caso de “libertinagem feminina” é retratado e assistimos a uma lancinante narrativa que concentra fetiche, casamento e humilhação em público. A sequência é repleta de planos rápidos nos rostos de soldados com grandes bigodes (lembra Eisenstein, mas Bergman dizia que nesta época subestimava demais o diretor soviético) e não há nenhum som dos personagens gritando ou chorando, o que torna tudo ainda mais angustiante, um verdadeiro pesadelo.

Enquanto o texto se mantém no núcleo do circo as coisas funcionam bem. Elas só destoam quando Albert e Anne (Harriet Andersson) vão conversar com um diretor de teatro que está ensaiando próximo ao local onde o circo está instalado. Se em partes esse novo momento do filme traz uma interessante briga entre artes e artistas (atores de teatro julgando-se muitíssimo superiores aos artistas de circo, o que abre um bom debate; além de a cena trazer mais um dos momentos de humilhação que existem no filme), por outro, se espalha para pequenos dramas que o roteiro demora para juntar novamente, caindo em uma repetição desnecessária ao aproximar o dilema de Albert com o do palhaço Frost (Anders Ek) visto logo no início. O roteiro se mantém interessante pela ininterrupta carga existencial, mas parece deslocado a partir deste ponto, até dando espaço para uma briga que tem como motivação o ciúme e o orgulho masculino ferido de Albert ao ser provocado pelo ator Frans (Hasse Ekman).

Em nenhum momento, porém, Bergman perde a mão como diretor ou sua exigência na parte estética diminui. Mesmo na sequência em que no roteiro é pouco interessante (a briga na noite do espetáculo) existem alguns momentos que simplesmente prendem o público, afeiçoado a Albert e que dele tem dó, sentimento fortalecido durante o “massacre” que ele leva de Frans na briga travada em pleno picadeiro. O encontro da tragédia com o lugar do espetáculo em mais uma humilhação pública é o ingrediente que nos leva para as resoluções finais da fita, onde, à exceção de Albert, todos os outros personagens são parcialmente escanteados. Fica clara a intenção de Bergman em elevar ao máximo o sofrimento do dono do circo (que precisava ferir alguém e desconta sua ira e frustração no urso doente), mas as pontas dramáticas aqui não são bem amarradas, mesmo que se mantenha firme a qualidade da direção e dos outros setores técnicos da obra.

Noites de Circo está muito longe de ser o horror cinematográfico que a crítica sueca pintou, mas há um certo exagero na aclamação de obra-prima para o longa, especialmente diante das falhas no encerramento e na formulação do destino dos personagens. Uma coisa é certa: a película está no time dos subestimados de Bergman e tem muito mais coisa interessante para o espectador do que apenas uma sucessão de desgraças abraçadas por um clima mais ou menos expressionista.

Noites de Circo (Gycklarnas afton) — Suécia, 1953
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Ingmar Bergman
Elenco: Åke Grönberg, Harriet Andersson, Hasse Ekman, Anders Ek, Gudrun Brost, Annika Tretow, Erik Strandmark, Gunnar Björnstrand, Curt Löwgren
Duração: 93 min.

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