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Crítica | Nós Que Nos Amávamos Tanto

por Luiz Santiago
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O diretor Ettore Scola já estava em seu décimo ano de carreira quando dirigiu Nós Que Nos Amávamos Tanto (1974), tendo se firmado como um notável criador de comédias aliadas a outros gêneros, especialmente o mistério, o drama e a aventura. Mesmo tendo conseguido certo destaque com os longas Conseguirão os Nossos Heróis Encontrar o Amigo Misteriosamente Desaparecido na África? (1968), Ciúme à Italiana (1970) e A Mais Bela Noite da Minha Vida (1972), foi apenas neste filme de 1974 que ele verdadeiramente chamou a atenção do grande público e recebeu aplausos da maior parte da crítica. Com muita justiça, vale dizer.

C’eravamo Tanto Amati é um filme muito profundo sobre a amizade entre três partisans que, após terminada a 2ª Guerra Mundial, vão percebendo o quanto sua aparentemente “eterna amizade” dá sinais de que não seria “tão eterna assim“. Para dar conta dessa narrativa que se passa ao longo de muitos anos, o diretor fez uma série de escolhas formais que fogem daquilo a que estamos acostumados em filmes de memórias ou em alguns tipos mais espirituosos de comédia. Através de uma interrupção direta da trama, com quebra de quarta parede e tudo (mais de uma vez, inclusive), Scola aproxima do espectador esse tema da amizade cheia de promessas que não resistem ao tempo, e a cada novo obstáculo, a cada motivo de separação, a cada período que esses indivíduos ficam sem se falar, é como se partilhássemos dos sentimentos do trio, cada um com suas particularidades, justificativas e eventos pessoais para colocarem como “motivo” do afastamento.

Esses períodos de silêncio entre as partes, porém, revelam algo ainda mais delicado e triste: presentados com a vida após um dos maiores conflitos armados da humanidade, esses três homens (maravilhosamente interpretados por Nino Manfredi, Vittorio Gassman e Stefano Satta Flores) com personalidades, gostos e opiniões tão distintas, simplesmente não conseguiram vencer o orgulho, as exigências da agenda e algumas questões emocionais, propositalmente se escondendo uns dos outros, mentindo sobre o que andavam fazendo da vida, não aproveitando o tempo livre que agora tinham para demonstrar o amor, o fervor dessa amizade forjada no campo de batalha. Uma relação que resistiu à guerra, mas não resistiu às armadilhas do cotidiano.

O uso do preto e branco em uma parte, e de cores em outra parte do filme faz um ótimo serviço de demarcação do tempo para a história. Primeiro, o diretor consegue nos passar essa sensação através da montagem, com fades que interligam tempo e espaços bem separados, às vezes passando semanas, meses ou alguns anos de um take para outro. E o curioso é que o espectador não se perde ou mesmo chega a ter dúvidas sobre esse andamento. Como estamos perfeitamente imersos desde os primeiros minutos, conseguimos perceber como os figurinos, a maquiagem, o cabelo e a direção de arte indicam que o afastamento entre os amigos está ainda maior, e quando chega ao ponto exato em que não cabia mais esse uso “simples” de montagem, a direção muda a tonalidade da obra e adiciona-lhe cor, sendo toda a segunda metade uma refiguração do exercício de andamento que tivemos na metade anterior. É uma técnica tão bem executada e com tantas boas surpresas visuais no meio do caminho, que ficamos maravilhados. Em igual medida, porém, quedamos entristecidos pelo peso nos corações desses protagonistas, incapazes de renunciar ao orgulho e tentar se aproximar do outro.

O amor, que deveria ser o grande salvador de qualquer relação, simplesmente não basta. Talvez por se conheceram tão bem, por se entenderem tão bem e poderem exigir tanto uns dos outros é que o avançar dos eventos empurram esse grupo de amigos para ainda mais longe uns dos outros. A vida ainda os presenteia com algumas possibilidades de reencontro, com alguns momentos de riso, de compartilhamento. Mas como todo vaso quebrado que é colado, as marcas das brigas e do distanciamento, das palavras que feriram… estão todas lá. No topo disso, o texto reflete mais uma vez sobre o tipo de vida que moldou cada um desses homens ao longo do tempo, e cada espectador encontrará maior ou menor justificativa para uma determinada atitude. O fato é que o que era para ser uma âncora para a vida tornou-se um compromisso a ser mantido por um título que, a certa altura, não parecia significar nada para nenhum deles: amizade.

Dedicado a Vittorio DeSica, Nós Que Nos Amávamos Tanto é uma viagem sentimental e metalinguística por vidas que se cruzam e se separam. As brincadeiras visuais, reencenações e projeção de obras como O Encouraçado Potemkin (1925), Ladrões de Bicicletas (1948), A Doce Vida (1960), O Eclipse (1962) e Servidão Humana (1964), buscam integrar esses sentimentos em mais de uma esfera, tornando o texto bastante realista e, ao mesmo tempo, uma singela fantasia fraterna sobre viver em uma cidade marcada pelo cinema, por eventos políticos intensos e por lutas onde os mesmos vitoriosos de sempre esperam para os aplausos no pódio. Esse mundo externo que transita entre a ficção e a realidade é uma piscadela de Scola para o público, nos oferecendo representação de dores e isolamento, perguntando se nós acreditamos que a mesma coisa acontece do lado de cá da tela. E infelizmente, acontece, mais do que a gente queria que acontecesse. Então algo corta de vez o laço, fazendo pessoas que antes matavam para se proteger, olhar com pesar umas para as outras e ter apenas a lembrança (a representação, como na projeção de um filme!) desse sentimento passado, lamentando como o título cortante da obra: “nós que nos amávamos tanto, como foi que chegamos a este ponto?

Nós Que Nos Amávamos Tanto (C’eravamo tanto amati) — Itália, 1974
Direção: Ettore Scola
Roteiro: Ettore Scola, Agenore Incrocci, Furio Scarpelli
Elenco: Nino Manfredi, Vittorio Gassman, Stefania Sandrelli, Stefano Satta Flores, Giovanna Ralli, Aldo Fabrizi, Mike Bongiorno, Federico Fellini, Marcello Mastroianni, Nello Meniconi, Guidarino Guidi, Pierluigi, Alfonso Crudele, Isa Barzizza, Marcella Michelangeli
Duração: 124 min.

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