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Crítica | Nossa Música

A Divina Comédia segundo Godard.

por Fernando JG
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Não é difícil encontrar entre os críticos da Cahiers du Cinéma aqueles que têm o costume de chamar o lendário Jean-Luc Godard de ‘teórico’ ou ‘ensaísta’, muito por conta do estilo adotado no final dos anos 60. O que dividiria lugar com o ‘teórico’ seria, então, o ‘ficcional’, aquele que dirigiu Uma Mulher é Uma Mulher, O Desprezo, Viver a Vida etc. Nossa Música, filme da sua fase tardia, é um misto entre as duas coisas, já que a construção das personagens ficcionais, com o cineasta entre elas, já induzem um forte apelo ao aspecto teórico da forma do filme, isto é: a própria narrativa converte-se, num esforço pedagógico, na discussão acerca das relações canônicas entre imagem-som | texto-imagem – tópicos godardianos por excelência. 

Para os familiarizados com o Dziga Vertov, o grupo de cinema socialista de cunho maoísta criado pelo cineasta, é possível engolir este aqui sem fazer cara feia, embora a decupagem dele seja também indigesta e a montagem, revolucionária. Ora, o seu filme-ensaio é dividido em três partes, numa mimesis dantesca (A Divina Comédia) bem apurada. No Inferno, temos imagens da guerra (ou das guerras), abrangendo diversos conflitos bélicos conhecidos na história da humanidade. Sem método, ordem e exibidas como que impulsionadas pela desordem da guerra, as imagens do Inferno são estremecedoras e críticas. No Purgatório, o filme, de fato, acontece: é um segundo ato que dá sustento ao longa-metragem, introduzindo discussões a respeito da poesia, das movimentações judaicas e as relações com a Palestina e reflexões sobre o próprio cinema, o que interliga sutilmente todas as partes do longa-metragem. O Purgatório é um ato mais denso do ponto de vista teórico, ocorrendo todo ele no modo de diálogo, com Godard interpretando a ele mesmo, expondo toda a sua ideia de filme – e é genial. Enfim, o Céu: paisagem hedônica, lugar de repouso, locus amoenus, jardins elíseos e uma jovem em estado de contemplação no pós-vida. Depois da guerra, a paz. Fim da película. 

O cineasta divide em três partes o seu enredo, como a estrutura de atos: três atos ligados entre si. Dois breves (primeiro e último) e um longo (o do meio, que desenvolve o filme). Aposta numa espécie de atitude meditativa e reflexiva a respeito do mundo ao redor, com uma crítica ácida aos mecanismos sistemáticos, aos conflitos bélicos, à redução e descarte da espécie humana, finalizando seu estudo com imagens plenas de poesia e bucolismo, como se quisesse afagar toda a densidade imposta durante os longos minutos que trabalhou tudo aquilo que queria passar ao público. Mas não é genial que a entrada no Paraíso seja protegida por fuzileiros navais? Ora, são os paradoxos que permeiam a racionalidade humana e toda a noção de uma ‘paz armada’. 

Godard, em Nossa Música, trabalha com meios dialógicos, como uma vez apontei num texto sobre A Chinesa. Outros povos, outras nações, outras condições, sobretudo periféricas, são sempre o alvo do diálogo godardiano em sua pedagogia. Não é à toa que se passe em Sarajevo a maior parte do filme. Vento do Leste, Ici et Ailleurs, Vladimir et Rosa, Comment ça va? entre outros, expõem toda essa tentativa de diálogo que, hoje, parece ser extinta. Uma espécie (a nossa) que tem como fundamento da existência a linguagem parece estar sendo destruída pela falta de comunicação. Teria Godard lido e relido O Narrador de Walter Benjamin? Veja que o ato mais dialógico concentra-se no meio da película, entre o início da morte e o pós-vida. Não é tão sugestiva essa montagem? Entre um e outro há a tentativa de diálogo, de humanização da nossa espécie. 

O seu engajamento evidencia na sua poética um compromisso com o aspecto social, num estilo ativo de cinema que não me parece preocupado em representar nada (e representar, para Godard, entra em outro problemão, já que para ele, na Sétima Arte, o ato de representar passa por um filtro burguês do objeto representado, isto é, o objeto representado é antes uma construção burguesa do que justiça social, uma vez que quem detém os meios de produção do filme não é o proletariado, mas o capitalista) mas em fazer pensar. É um fazer artístico próximo a algo humanista e isso se revela na fala de Olga (Nade Dieu): “quando se mata para defender uma ideia, não se defende uma ideia, mata-se um homem, apenas isso”. 

Com isso, o cineasta não quer mudar o mundo e nem tem poder para isso, mas ele age minuciosamente naquilo que é próprio a ele, o cinema. Quero dizer, ele não altera a estrutura social, mas muda radicalmente a estrutura cinematográfica estabelecida pela burguesia e força a todos – isso mesmo, a todos – a seguirem-no e reconhecê-lo como revolucionário, e ainda mais: obriga a todos a reconhecer como legítima a sua forma, causando uma crise assustadora na forma tradicional do filme, na estrutura, digamos, burguesa do cinema. É exatamente isso que ele faz em Nossa Música

Notre Musique marca uma fase madura do cineasta, com um argumento consistente, que não se perde na obliquidade do enredo que dá forma aos temas tratados, lidando com as figuras de ironia de um modo requintado, soando por vezes abstrato mas sempre com um forte sentido palpável na semântica fílmica. É o gênero ensaio levado ao limite. 

Nossa Música (Notre Musique, França, Suíça, 2004)
Direção: Jean-Luc Godard
Roteiro: Jean-Luc Godard
Elenco: Jean-Luc Godard, Sarah Adler, Nade Dieu, Ronny Kramer, Georges Aguilar
Duração: 95 min. 

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