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Crítica | Nove Desconhecidos

por Ritter Fan
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Acho fascinante quando produções completamente independentes, mas com temática e/ou estrutura muito semelhantes são lançadas no mesmo ano. Foi assim com policiais e cachorros em Uma Dupla Quase Perfeita e K-9: Um Policial Bom pra Cachorro, em 1989; meteoros caindo na Terrra em Armageddon e Impacto Profundo e a vida de formigas animadas em Formiguinhaz e Vida de Inseto, em 1998 (duas duplas no mesmo ano!); e Matrix, 13º Andar e ExistenZ, em 1999 (uma trinca!), dentre alguns punhados de outras coincidências desse tipo. Corta para 2021 e temos essa bizarra situação com séries de TV, começando com a HBO lançando The White Lotus, que foi ao ar entre 11 de julho e 15 de agosto, e nada menos do que somente três dias depois, em 18 de agosto, Nove Desconhecidos indo ao ar pela Hulu, que teve distribuição, no Brasil, pela Amazon Prime Video.

As duas séries muito facilmente poderiam ter sinopses idênticas, algo como “desconhecidos reúnem-se em hotel de alto luxo para relaxarem e suas vidas começam a ser desveladas”. Há até coincidência em alguns “tipos” de personagens, como a família problemática, a mulher de meia idade acima do peso cheia de inseguranças e o belo casal jovem feliz da vida. Mas, claro, a convergência existe apenas nos aspectos e elementos macro, já que, no detalhe, são duas séries que caminham de forma muito diferentes, com The White Lotus tendo uma pegada satírica que serve mais como um fascinante e muito esclarecedor microcosmo para o exame do privilégio branco e Nove Desconhecidos um drama/mistério que serve de porta de entrada para uma jornada coletiva de autoconhecimento, expiação de pecados e de culpas e encontros consigo mesmo. Ou seja, são séries irmãs, não tenham dúvida, mas com cada uma seguindo sua própria trajetória.

Tranquillum House, centro terapêutico na Califórnia com cara de hotel exclusivo de luxo comandado pela misteriosa russa radicada nos EUA Masha Dmitrichenko (Nicole Kidman), oferece uma estadia de renovação completa do corpo e da alma e para lá vão, por diferentes razões, a modesta família Marconi formada pelo pais Napoleon (Michael Shannon) e Heather (Asher Keddie), além da filha prestes a fazer 21 anos Zoe (Grace Van Patten), todos em luto constante em razão da morte de Zach (Hal Cumpston), irmão gêmeo de Zoe; Frances Welty (Melissa McCarthy), escritora bem-sucedida, mas com diversos problemas profissionais e pessoais; Tony Hogburn (Bobby Cannavale), ex-jogador de futebol americano que teve sua vida destruída por uma lesão que o levou ao vício; Carmel Schneider (Regina Hall), mãe solteira que foi trocada por uma mulher mais jovem pelo marido; Lars Lee (Luke Evans), homem que parece ter objetivo escuso por ali; e Ben (Melvin Gregg) e Jessica (Samara Weaving) Chandler, casal jovem e milionário que parece ser o retrato da perfeição. Acompanhados de perto não só por Masha, mas também pelos cicerones e terapeutas Delilah (Tiffany Boone) e Yao (Manny Jacinto), os nove hóspedes, então, são vagarosamente levados a enfrentar seus demônios.

Permeando as vidas cada vez mais devassadas dos nove desconhecidos do título, aos poucos o espectador percebe que Masha também tem não só um passado mal resolvido, como um objetivo maior que apenas o tratamento mais facilmente verificável e que envolve a ingestão de alucinógenos sem o consentimento de seus pacientes. Apesar de Tranquillum ser um paraíso na Terra, ele é ilusório e alberga pessoas quebradas que começam a reunir os cacos de sua vida com Masha como guia ou, em muitos casos, quase que como uma diretora de presídio, criando todas as situações possíveis para manter todo mundo confinado em seu centro. Enquanto as revelações sobre os passados dos hóspedes, por mais mundanos que alguns possam ser, carregam uma aura verdadeira de evolução narrativa, notadamente para a família Marconi e para Frances e Tony, tudo aquilo que gravita ao redor da guru espiritual do local me pareceu como uma reunião de artifícios narrativos para manter a atenção do espectador, de certa forma de maneira muito semelhante à misteriosa morte que marca os segundos iniciais de The White Lotus (outra convergência entre as séries!).

Kidman, no início, é uma presença quase fantasmagórica e mítica, somente para que seu personagem, aos poucos, vá tomando os espaços que deveriam ter sido dedicados aos hóspedes e aos seus dois principais funcionários, resultando em um desenvolvimento narrativo que privilegia alguns em detrimento de outros que, ao final, têm suas resoluções apressadas e quase que magicamente materializadas na forma de uma terapia radical. Em outras palavras, o mistério de Masha, por assim dizer, que começa comendo pelas beiras de maneira não intrusiva, torna-se o centro das atenções exatamente no momento em que o espectador comprou o conceito da minissérie e começou a criar empatia com esse ou aquele personagem (no meu caso, foram os vividos por McCarthy e Cannavale, com o de Wilson correndo por fora).

Compreendo que, por outro lado, essa escolha do roteiro funciona como cola narrativa que mantém os “desconhecidos” conectados entre si, mas a manutenção do mistério até bem adiantado na série é o que incomoda, como se ele fosse realmente necessário para impedir que o espectador se levante do sofá. Não é como na primeira temporada (que deveria ter sido a única) de Big Little Lies, outra produção de David E. Kelley com Nicole Kidman baseada em obra de Liane Moriarty, em que o mistério era central a absolutamente tudo, mas ao mesmo tempo não intrusivo, pois, em Nove Desconhecidos, ele se agiganta cobrando seu preço, ou seja, justamente apressando o final e quebrando o ritmo consistentemente lento que a direção de Jonathan Levine vinha imprimindo.

Sem dúvida alguma, Nove Desconhecidos tem seu mérito maior em um elenco quase todo ele muito bom (os que não são muito bons, não o são mais porque não tiveram oportunidade do que por não serem bons mesmo) e por criar uma atmosfera fabulesca que, curiosamente, em muitos momentos lembra a estética da completamente não relacionada Devs. No entanto, diferente de sua “concorrente” The White Lotus, ela falha ao atropelar a construção de um ecossistema de bons personagens por um protagonismo de Kidman que não era exatamente necessário e que acaba esvaziando seu potencial.

Nove Desconhecidos (Nine Perfect Strangers – EUA, de 18 de agosto a 22 de setembro de 2021) 
Criação: David E. Kelley (baseado em romance de Liane Moriarty)
Desenvolvimento: David E. Kelley, John-Henry Butterworth
Direção: Jonathan Levine
Roteiro: David E. Kelley, John-Henry Butterworth, Samantha Strauss, Jessica Sharzer, Jonathan Levine
Elenco: Nicole Kidman, Melissa McCarthy, Michael Shannon, Luke Evans, Samara Weaving, Asher Keddie, Melvin Gregg, Grace Van Patten, Regina Hall, Bobby Cannavale, Tiffany Boone, Manny Jacinto, Zoe Terakes, Ben Falcone, Hal Cumpston
Duração: 393 min. (oito episódios)

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