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Crítica | Núpcias de Escândalo

Não somos perfeitos.

por Kevin Rick
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Para mim, é impossível escrever sobre Núpcias de Escândalo sem fazer um vínculo com o contexto da carreira de Katharine Hepburn à época. A atriz e protagonista deste filme foi chamada de box office poison, em tradução livre “veneno de bilheteria”, por um famoso artigo em 1938, junto de outras grandes estrelas de Hollywood que tiveram películas pouco rentáveis na segunda metade da década. É uma situação histórica que, aliás, veio a minha atenção na cinebiografia O Aviador, de Martin Scorsese, em que Hepburn é interpretada por Cate Blanchett – filme que contém leves toques de crítica a abordagem da imprensa com celebridades, enaltecendo-as para logo depois tratá-las com crueldade e falta de empatia, transformando-as em figuras a serem amadas ou odiadas.

Esse comentário social também existe em Núpcias de Escândalo, mas em relação à alta sociedade, onde Tracy Lord (Hepburn) é constantemente rotulada pelas pessoas ao seu redor, seja como deusa, rainha, superficial, mimada, entre outros adjetivos triviais. Praticamente todo mundo (especialmente figuras masculinas) têm algo a dizer para Tracy, sem entender que ela não é (e não aceita ser) um rótulo de socialite bonita e fútil, da mesma forma que Hepburn não se deixou ser tachada como um veneno de bilheteria, reerguendo sua carreira após o sucesso comercial desta obra. Também é importante pontuar como a persona da atriz, vista como independente e “masculinizada” para um período audiovisual formado em clichês femininos, dá uma segunda camada extra fílmica (quase metalinguística) à sua performance.

Até poderíamos traçar uma ótica progressista e feminista à obra, certo? Não necessariamente. Posso ver uma leve linha nesse sentido no lado narrativo sobre comportamento de gênero e na própria questão de Hepburn interpretar mulheres mais autônomas e autoritárias, sem sexualização barata (convenhamos, ela não precisa disso para ser deslumbrante), mas a obra, como produto do seu tempo, também “passa pano” para os homens e suas atitudes machistas. Não é um obstáculo constante ao longo da fita, mas, por exemplo, é difícil engolir como o pai de Tracy trai sua mãe, justifica dizendo que é algo que homens fazem e ainda por cima culpa sua filha pelo caso! Essa questão não é problematizada no restante da fita, e Tracy termina a obra pedindo desculpas ao patriarca. Felizmente, a situação com o pai é esporádica e sem grandes efeitos na história como um todo.

O tratamento do roteiro é mais sobre estereótipos. Hepburn não é uma deusa, assim como seu ex-marido Dexter (Cary Grant) não é apenas um playboy alcoólatra. A inserção do escritor Macaulay Connor (James Stewart) funciona muito bem na proposta, oferecendo uma figura cínica (quase um espelho da audiência, afinal, eu mesmo tenho dificuldade em identificar com obras sobre drama dos ricaços) e fora daquele círculo rico, para trabalhar os diferentes preconceitos e estigmatizações dos indivíduos em tela. Como eu havia dito, há um comentário social sobre a alta sociedade, mas também sobre diferenças de classes, sobre nossas imperfeições e, como o próprio Dexter coloca, uma análise da fragilidade humana. Classificada como uma comédia romântica, Núpcias de Escândalo também é um inteligente estudo de personagem sobre o trio principal.

Mesmo que a observação social não seja tão aprofundada como a crítica talvez tenha dado a entender, o cineasta George Cukor sabe como trazer substância e dramaticidade à leveza cômica da experiência. Por exemplo, há uma cena em específico que Tracy e sua irmãzinha fingem serem mulheres superficiais, em um momento típico de screwball comedy, mas com um toque sarcástico. O filme é cheio dessas pequenas situações de crítica bem-humorada, bebendo de elementos visuais “maluquinhos” do subgênero descrito (a sequência de Stewart bêbado é comicamente genial), também acompanhado da divertida trilha sonora de Franz Waxman com instrumentais para acentuar piadas (a cena de abertura da obra é o maior exemplar nesse aspecto), apesar de que o compositor pouco explora esse lado musical cômico à medida que a narrativa avança.

Cukor também sabe como caminhar entre gêneros, trazendo uma pontinha de melancolia ao romance e ao “drama de aparências”. Há momentos que ele enquadra Hepburn com um certo brilho e deslumbramento, dando forma visual a como os homens idealizam e endeusam a protagonista, e também momentos com planos distantes para enfatizar a tristeza da socialite (Waxman complementa essas cenas com cordas sonoramente tristes e desoladoras, principalmente sons de violino). Ajuda bastante o fato de que o texto de Donald Ogden Stewart, baseado em peça de Philip Barry, traz diálogos sofisticados e cheios de subtexto, enriquecendo conversações e dando substância dramática à comédia.

E, claro, Núpcias de Escândalo traz três titãs de atuação (Hepburn, Stewart e Grant) se reunindo em um crossover mais fantástico que muitos filmes de super-herói. Assim como Cukor na direção, o trio de estrelas é soberbo em atravessar a leveza cômica, a melancolia romântica e a sofisticação dramática do texto, surpreendentemente diversificado para as populares comédias do subgênero “comedy of remarriage” (comédia de casar novamente) das décadas de 30 e 40. Hepburn é divertida, autoritária, insegura e vulnerável; Stewart traz sua típica simpatia, divertindo inicialmente com seu cinismo e posteriormente com sua inocência; e Grant, apesar de ter menos tempo de tela, é espetacularmente charmoso com seus sorrisos sarcásticos.

Núpcias de Escândalo é um dos maiores exemplares das clássicas comédias românticas de Hollywood, cheia de encanto e elegância, mas também emocionante e levemente reflexiva. Não espere encontrar estereótipos nas três figuras principais, pois eles não podem ser rotulados. Hepburn que o diga. No fim, mesmo realizados e se autodescobrindo, o trio é pego numa foto, possivelmente para causar um novo… escândalo.

Núpcias de Escândalo (The Philadelphia Story) | EUA, 1940
Direção: George Cukor
Roteiro: Donald Ogden Stewart (baseado na peça The Philadelphia Storyde Philip Barry)
Elenco: Cary Grant, Katharine Hepburn, James Stewart, Ruth Hussey, John Howard, Roland Young, John Halliday, Mary Nash, Virginia Weidler
Duração: 112 min.

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