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Crítica | O Agente Secreto (2025)

Memória, identidade, medo e paranoia.

por Ritter Fan
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No primeiros minutos de O Agente Secreto, vemos o personagem de Wagner Moura, em 1977, durante a semana do Carnaval, dirigindo um Fusca amarelo todo empoeirado e parando para encher o tanque em um posto de beira de estrada no meio de lugar nenhum, posto esse que conta com um homem morto poucos passos depois das bombas de gasolina coberto por um papelão e uma única pedra em cima para a mortalha improvisada não ser levada pelo vento. O cheiro de morte é onipresente, o atendente do posto explica que foi uma tentativa de assalto e que o “meliante” foi baleado por seu colega da noite anterior que já partiu para as festividades e que não há ninguém para recolher o morto, pois o dono do estabelecimento não liga e a polícia não vai fazer nada justamente naquela semana. Ato contínuo, como um alívio que dura 10 segundos, uma Brasília da Polícia Rodoviária Federal chega no posto, mas o corpo permanece intocado e basicamente ignorado, pois o que os policiais querem é achacar o motorista do Fusquinha que os recebe com toda a calma e cortesia possível mesmo diante desse quadro quase surreal.

Com essa inesquecível cena de abertura, que nasceu de um curta nunca produzido, Kleber Mendonça Filho nos apresenta a quase tudo o que precisamos saber sobre seu longa. O mistério sobre quem exatamente é o protagonista é algo que não será entregue muito facilmente. O clima de thriller é estabelecido. A morte está à espreita. A indiferença sobre as vidas humanas é a regra. A Ditadura Militar em vigor é corrupta e existe para servir-se e não para servir o cidadão que, por seu turno, está sozinho, abandonado à sua própria sorte, sem ter muito o que fazer senão acomodar-se e dançar de acordo com a música. Quando o protagonista é finalmente nominado – Marcelo (Wagner Moura) -, isso acontece em um contexto que reitera a abordagem ambígua, pois ele encontra abrigo em um lugar já preestabelecido, sendo recebido de braços abertos por Dona Sebastiana (Tânia Maria), uma simpaticíssima senhora que, porém, assim como ele, guarda algo no fundo de seus olhos. Um gato com dois rostos empresta um viés surreal que reitera a pergunta “quem é Marcelo?” e, então, o roteiro, com toda a calma do mundo, começa a desfazer as tranças do que parece algo estranho, mas que era infelizmente muito comum nessa época, com esse desfazimento contando até mesmo com uma perna humana dentro de um tubarão e assassinos de aluguel.

Mas há outros elementos importantes. Um deles é a família de Marcelo, composta por uma esposa já falecida (por doença, diz ele) e seu filho pequeno, além de sua mãe cuja prova física de existência ele procura em seu emprego pré-arranjado na entidade que emite carteiras de identidade, trazendo à tona os temas de identidade e memória. Da mesma maneira, como uma forma de resgatar os acontecimentos e de mostrar que aquilo que começou na ditadura ainda não acabou, há sequências no presente, mas não como artifício de enquadramento, como seria mais comum, mas sim como mais um aspecto da obra multifacetada do diretor e roteirista que funciona como impulsionador da narrativa. Nelas, uma jovem universitária contratada para degravar fitas cassete de casos antigos, ouve fragmentos da história de Marcelo e interessa-se talvez mais do que deveria pelos eventos que o espectador vê na tela, realmente envolvendo-se com o drama e com o suspense criados, o que serve para colocar na mesa a triste realidade de que aquilo que começou com o golpe militar parece não ter acabado até hoje.

Outro elemento, este pouco explorado – pelo menos com essa pegada incisiva – em filmes brasileiros que abordam a Ditadura Militar, é a natureza não só militar, mas empresarial do regime então em vigor, algo que escolhemos esquecer ou, talvez mais justamente, sejamos manipulados para que esse fim seja alcançado. Em O Agente Secreto, o estado opressor, apesar de sempre presente como uma nuvem carregada no horizonte, permanece quase sempre no banco de reservas, em um papel mais passivo, abrindo espaço para a corrupção sistêmica de interesses privados que se beneficiam da situação, algo que o diretor traz para seu filme primeiro como um filete de água em uma torneira esquecida aberta, depois como um jorro assustador que nos afoga com esse outro lado da moeda que não é menos assustador. Mas há muita elegância no que Kleber Mendonça Filho faz – uma de suas marcas, vale lembrar – e o clima de tensão é por diversas vezes arrefecido pela ternura das relações de Marcelo com sua família e com seus vizinhos, inclusive e especialmente Dona Sebastiana e por outras tantas vezes ganha um ar farsesco com personagens que, de tão asquerosos como o delegado de polícia e seus dois filhos, são verdadeiras caricaturas, com direito até mesmo a um momento comicamente macabro em que a tal perna achada na barriga do tubarão “ganha vida”.

Mas o que realmente ganha vida é a cidade de Recife nos anos 70. Poucos cineastas atuais conseguem trabalhar tão bem os espaços urbanos quanto Kleber Mendonça Filho. As cidades que vemos em suas obras são vivas, pujantes, cheias de personalidade, com suas histórias e folclores presentes em cada tomada, transformando-as quase que de imediato em verdadeiros personagens que acolhem e contextualizam seus protagonistas e antagonistas, tornando-se parte essencial da história. Em O Agente Secreto, o diretor e roteirista parece alcançar o auge dessa sua habilidade, algo que pode ser visto, dentre outras, em duas cenas marcantes, uma discreta e breve, outra mais chamativa e longa. Na primeira delas, vemos Marcelo sair do cinema onde seu sogro trabalha e que serviu de palco para uma reunião particularmente perturbadora e imediatamente caminhar entre um bloco de rua festejando o Carnaval. A singeleza da cena é ímpar, assim como sua capacidade de transmitir sentimentos antitéticos. Na outra, vemos uma perseguição atípica – por sua lentidão – pelas ruas da cidade que nos permite observar o cotidiano de um povo vivendo sua vida chocando-se com a torpeza de interesses funestos.

Claro que Kleber Mendonça Filho não é o único a merecer créditos pelo que ele faz para trazer Recife ao primeiro plano. A direção de arte de Thales Junqueira e os figurinos de Rita Azevedo são a alma desse mergulho profundo que o diretor faz nesse mundo urbano de sua mais nova obra. A reconstrução de época é primorosa em seus mínimos detalhes, de automóveis barulhentos de cores berrantes a móveis clássicos compondo os cenários, passando por orelhões, repartições públicas e, claro, o cinema da rede Luís Severiano Ribeiro que é um dos cenários centrais do longa, com direito a muita citação a Tubarão, filme que é reexibido para aproveitar a fama da “perna no tubarão” e que Fernando tem pavor e ao mesmo tempo muita vontade de assistir e também a A Profecia, lançado por aqui na exata semana em que o filme se passa e cujo tema tem mais do que apenas semelhanças longínquas com os temas de O Agente Secreto, outra característica do diretor que, como se sabe, um dia foi crítico de cinema. A direção de fotografia de Evgenia Alexandrova também merece nota pela preocupação em dar ao filme a aparência de uma obra produzida na época em que ela se passa, com mais granulação e cores esmaecidas, mas sem que isso pareça artificial, o que arriscaria retirar o espectador da imersão.

Wagner Moura, por seu turno, mesmo com sua carreira brasileira e internacional devidamente consolidada em uma variedade de papeis, encontra em seu Marcelo seu grande momento para brilhar com todo o vigor. Curiosamente, porém, não se trata de um papel em que brilhar seja requisito. Muito ao contrário, o personagem é introspectivo, jamais afeito a arroubos dramáticos ou a momentos de violência. Tudo é muito sutil, dependendo de um trabalho em que pequenas alterações nas feições do rosto casadas com a linguagem corporal que o momento exige é a chave do sucesso. O diretor sabe muito bem disso e abre espaço para o ator dominar as cenas em que está presente a ponto de por vezes até esquecermos dos demais atores com quem ele interage. Há um escopo épico inegável em O Agente Secreto, mas o filme não depende de momentos bombásticos ou atuações extremas para mostrar o que deseja enredar. Tudo o que é necessário é um olhar melancólico de Marcelo quando lembra de sua esposa ou da felicidade de pequenos e breves momentos dele com seu filho.

Sem entrar em detalhes para não dar spoilers, quando o filme chega ao seu epílogo no presente, ele perde parte de sua força. Na verdade, melhor dizendo, aqui Kleber Mendonça Filho acerta ao lidar com os ecos dos horrores da ditadura que muitos ainda insistem em enterrar ou, pior, negar, mas tropeça a somente a essa altura voltar a falar da mãe de Marcelo cuja prova física de existência ele procura, introduzindo um assunto que havia ficado nas entrelinhas, mas nunca realmente desenvolvido com todas as letras, o que acaba sendo quase que uma nota de rodapé sem peso apesar da importância da questão que poderia levar a uma visão sistêmica muito anterior ao golpe. É um momento estranho que é tornado ainda mais estranho pela escalação do ator que vive o personagem que aparece nesse epílogo, algo que muito mais distrai do que traz alguma vantagem narrativa.

No entanto, um encerramento menos do que perfeito de um épico de outra forma quase irretocável não é um  problema realmente sério e O Agente Secreto triunfa como um thriller de queima lenta que nos deixa ver um aspecto pouco explorado da ditadura em meio a uma história carregada de vigor narrativo e apuro estético, com um fenomenal trabalho dramático de Wagner Moura. Kleber Mendonça Filho, com “apenas” seis longas em sua filmografia, sedimenta-se como um daqueles raros cineastas modernos incapazes de oferecer menos do que pérolas cinematográficas aos espectadores, algo que já fica evidente aqui antes mesmo de a cena no posto de gasolina de beira de estrada acabar, mas que é reiterado sucessivas vezes até os créditos começarem a subir.

Obs: Crítica originalmente publicada em 26 de outubro de 2025, como parte da cobertura da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (2025). Republicada hoje, em razão do lançamento do filme no circuito nacional de cinema.

O Agente Secreto (Brasil/França/Países Baixos/Alemanha, 2025)
Direção: Kleber Mendonça Filho
Roteiro: Kleber Mendonça Filho
Elenco: Wagner Moura, Carlos Francisco, Tânia Maria, Robério Diógenes, Maria Fernanda Cândido, Gabriel Leone, Roney Villela, Hermila Guedes, Isabél Zuaa, Alice Carvalho, Laura Lufési, Thomás Aquino, Igor de Araújo, Udo Kier, João Vitor Silva, Kaiony Venâncio, Suzy Lopes, Buda Lira, Licínio Januário
Duração: 158 min.

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