Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | O Amigo Americano

Crítica | O Amigo Americano

Testando os limites do subgênero.

por Fernando JG
1,3K views

O Amigo Americano (Der amerikanische Freund, 1977) é uma película muito singular dentro da filmografia de Wim Wenders. Saindo da sua zona de conforto, a escolha em trabalhar uma trama policial vem da vontade em adaptar o thriller Ripley’s Game de Patricia Highsmith, uma de suas romancistas favoritas. A esta altura, o cineasta  estava começando a se consolidar como um nome conhecido por imprimir uma assinatura devastadora e madura sobre o curso da vida em seus filmes, como tinha feito no marcante No Decurso do Tempo, no ano anterior. Era uma surpresa que Wenders escolhesse lidar com qualquer espécie assim, de gênero policial, coisa que nunca tinha experimentado na sua estética.

Mesmo que retornasse anos depois num enredo parecido, quando compõe o menos engenhoso Tão Longe, Tão Perto, era um tiro no escuro. Contudo, visivelmente estimulado, o cineasta entrega uma peça policial diferente de tudo o que estávamos acostumados a assistir dentro do gênero. Uma vez de cunho existencialista, O Amigo Americano não é só mais um filme neo-noir, mas o filme noir de Wim Wenders, de modo que esta produção assinala a versatilidade de seu cinema, que explora diferentes gêneros cinematográficos com excelência e autoria. Vertendo elogios à história da sétima arte, esta película não deixa de ser a sua homenagem ao noir hollywoodiano, e bem à moda wenderiana, e por isso não menos magnífica. 

Sir. Zimmermann (Bruno Ganz) está morrendo em decorrência de uma leucemia e quando o criminoso Raoul Minot (Gérard Blain) descobre que Zimmer tem pouco tempo de vida oferta-lhe um punhado generoso de dinheiro para que mate dois rapazes. Se eu vou morrer, afinal, e tenho uma família, por que não cometer o crime e partir logo em seguida, deixando-os numa situação confortável? Esta é a primeira trama moral que W.W oferece ao espectador. 

Embora estejam presentes elementos ficcionais típicos que poderiam proporcionar uma movimentação da trama, o enredo não engata em situação alguma. O cineasta constrói uma intriga peculiar, em que a força da ação do enredo não se concentra no curso dos acontecimentos, como tradicionalmente ocorre neste gênero, mas a situação do crime se delineia de maneira introspectiva a partir das reflexões geradas no interior de Zimmermann. Com isso, Wim Wenders, ao retirar a tensão para o momento catártico do crime, evidencia algo muito mais intimista dentro de seu filme, que é a angústia de Zimmer diante do passo derradeiro rumo ao assassinato. É um filme de personagem e não de intriga propriamente. 

Para quem espera um thriller eficiente, encontrarão antes um drama de cunho reflexivo-existencialista do que uma densidade própria desta espécie de roteiro policial. É um noir, sem dúvida, mas um noir introspectivo – e por isso nem sempre palatável para todos. Se posso assimilar a proposta deste filme com um de seus primeiros longas, o diretor age como se expusesse O Medo do Goleiro Diante do Pênalti (1972). É nesta chave de leitura que se deve assistir O Amigo Americano. Como um filme policialesco, o ritmo não convida nem traz vibração, e demora a chegar no seu objetivo – e quando chega não satisfaz por completo. As motivações não são todas evidentes e isso dificulta que o julgamento da trama seja concluído com êxito. A conclusão do arco narrativo não convence e precisava de mais: ou mais drama ou mais intriga policial. Isto é, o filme ganha não pelas ações ocorridas no thriller, pelo contrário, deixa a desejar. No entanto, a construção da psicologia dos personagens e os encontros típicos que marcam o cinema de W.W ocorrem com empenho e liricidade. 

Se há problemas da ordem de um roteiro que não é pleno em suas motivações, nada tenho a dizer de negativo a respeito da fotografia. Poucas imagens da Alemanha serão tão lindas quanto as de Wim Wenders, que traduzem, nas cores adotadas para representá-la, um tom de melancolia e nostalgia numa beleza incomensurável. As imagens escurecidas, soturnas e barrocas combinam tanto com o drama de Zimmermman, quanto com a estética policial; no entanto, o que é mais excelente em termos técnicos são os enquadramentos feitos ao longo de cada instante do filme. Cada frame é tão geometricamente perfeito que nos dá a impressão de estarmos sempre diante de um quadro muito bem modelado. Bem conduzida, a câmera faz giros impecáveis ao redor dos personagens e nos faz perceber que ela está sempre em movimento, buscando cercar o seu objeto – e quando ele não se situa num local apropriado, ela mesma faz o papel de enquadrá-lo numa posição ideal, entregando shots fotográficos arrebatadores por meio de close-ups inesquecíveis. 

Bruno Ganz, no melhor momento de sua carreira, expõe uma segurança invejável e domina, com maestria, o papel que lhe é dado. A harmonia que tem com Dennis Hopper é de admirar e por vezes o cineasta insinua que há um algo a mais entre eles. É muito sutil, mas o dado está lá no background da trama. A ligação entre ambos os personagens é um dos grandes pontos do filme, e ela se constrói aos poucos e ganha por gerar um sentimento profundo de amizade e parceria, para não dizer que há uma atmosfera de um romance velado e não-dito entre eles, que não acontece, é claro, mas que poderia. 

Aqui, os personagens são sobretudo humanos, com traços de humanidade potentes, em que mesmo o criminoso teme e sofre diante da indecisão entre querer e temer. O quão fácil é ludibriar a espécie humana? A manipulação dos exames de Zimmer, fazendo-o acreditar que está em estado terminal, levando-o a cometer crimes, justificáveis ou não, coloca luz sobre um gênero humano cindido entre o bem e o mal (Asas do Desejo, Tão Longe, Tão Perto). São inúmeras as passagens em que Zimmermann chora de remorso, ou crê que está fazendo a coisa errada, o que evidencia complexidade psicológica e um estudo vigoroso sobre as escolhas. 

O Amigo Americano expõe ambivalências inerentes da nossa espécie, lugares escondidos e obscuros dos quais basta que se acenda a luz para que apareçam. É, enfim, com rigorosidade técnica e coragem que o cineasta, no auge do Novo Cinema Alemão, homenageia o subgênero cinematográfico, prestando um serviço muito bem feito e delicado, introduzindo melancolia e intensidade psicológica num gênero tipicamente avesso ao lirismo, servindo ao noir uma possibilidade outra de enredo em que lide muito mais com a angústia de um homem perante suas próprias ações infaustas do que uma trama de gato e rato tão já exaustivamente explorada. É isto que faz do Amigo Americano profundamente inédito e singularmente autoral. 

O Amigo Americano (Der amerikanische Freund, Alemanha Ocidental, França, 1977)
Direção: Wim Wenders
Roteiro: Wim Wenders
Elenco: Dennis Hopper, Bruno Ganz, Lisa Kreuzer, Gérard Blain, Nicholas Ray, Samuel Fuller, David Blue
Duração: 127 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais