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Crítica | O Anjo (2018)

por Gabriel Carvalho
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“As pessoas são malucas? Alguém considera a chance de ser livre? Ir a todo lugar quando quiser; quando você quiser. Nós todos temos um destino. Eu sou um ladrão de nascença. Eu não acredito em “isso é seu, e isso é meu.”

Você já se divertiu vivenciando cenas de massacre nas obras de Quentin Tarantino? E se os assassinatos fossem “reais” e não experiências puramente cinematográficas, sem inspirar-se objetivamente em nenhum acontecimento factualPois essa produção argentina, O Anjo, é consideravelmente polêmica em como enxerga o caso verdadeiro de um jovem criminoso, responsável por inúmeros assassinatos e roubos milionários. O cineasta Luis Ortega, visando um objetivo específico – uma auto-crítica -, provoca o espectador, porém, justamente divertindo-o com a jornada do protagonista. Esse é um garoto buscando uma descoberta pessoal no crime, apenas para se enxergar ainda mais perdido no mundo – uma juventude frustada – do que inicialmente estava, enquanto ainda não tinha sangue nas mãos. O pai do menino, em uma das primeiras cenas, aponta que não o quer desperdiçando a oportunidade de estudo em um novo colégio. Querer não é poder, pois a juventude desperdiçará bem mais que meras chances para esperanças.

A coragem do longa reside em arriscar-se por uma vertente de entretenimento, mas em uma história que, na realidade, é pavorosa, sobre as mortes aleatórias, com requintes de crueldade, de inúmeras pessoas. Um sadismo subjacente? O cineasta transforma as coisas, aparentemente, em uma bagunça envolvente, com trilha sonora energética, personagens carismáticos e um charme romântico sensual delicioso. Como uma narrativa acerca de invasões domésticas, sem uso de arma de fogo, se transforma em um enredo sobre um serial killer angelicalUm menino em meio à ditadura militar argentina – pontuação relevante para uma cena específica da fita -, Carlos Puch (Lorenzo Ferro) é um garoto de cabelo longo atraído pela vida à margem das regras sociais, à margem da moral de uma sociedade, assim como o público é atraído por essa atmosfera vívida. Os espectadores de O Anjo adentram uma trajetória em que o sangue torna-se banal e as mortes costumeiras. Um gatilho, um único gatilho, é o que separa os vivos dos mortos.  Vocês apertariam?

A canção que empolga a sequência inicial do filme, “El Extraño Del Pelo Largo”, da La Joven Guardia, com o jovem dançando por uma casa vazia, comenta basicamente do que se trata essa criatura: “É inútil tentar entender/ou talvez interpretar suas ações“. O monólogo – em destaque na crítica – abre as portas do espectador para esse universo sem respostas. Qualquer “compreensão” encontra-se perturbadamente em regiões subversivas na cabeça confusa do jovem, perdido em seus próprios porquês. Ora, os porquês são insuficientes. Uma “justificativa” para os roubos, plenamente compreensível apenas na mentalidade desse garoto, já é apresentada nesse deturpado monólogo. Mais tarde, quando enfim matar, Puch ainda conseguirá se desvencilhar da culpa – “ele morreu por conta própria”. Os homens que agrediram o seu amigo em um caso e o caminhoneiro que estava com uma pistola escondida noutro. Eis uma incessante necessidade por respostas a atitudes que, na realidade, são impulsionadas apenas pela sua cabeça – tão adoecida.

Com fogo latente nos olhos – lágrimas apenas uma única vez, quando a narrativa é invertida, saindo do seu enredo em crescimento, para a sua derrocada -, o criminoso também não é uma criatura deselegante. Quebra, portanto, com o estereótipo do crime associado à feiura. E é exatamente sobre isso que se trata o longa-metragem. Assim como a aparência do assassino, a obra é visualmente belíssima, em contrapartida com a cru natureza retratada. A cenografia cumpre uma essencial participação nessa contraposição entre o grotesco e o lúdico. A “primeira” casa invadida é extremamente colorida, complementada por decorações. Isso contrapõe-se com o cenário da última cena, ambiente devastado pelo vácuo de pensamentos do protagonista, alcançando, enfim, a perdição ansiada. O Anjo Negro – assim nomeado pela imprensa -, em uma manobra cíclica do longa-metragem, retoma uma essência musical, igualmente coreográfica, para enaltecer o que fora essa sua jornada até aqui.  Esse projeto, portanto, encerra-se muitíssimo bem.

De um começo sedutor a um término auto-crítico e estarrecedor, Carlos dança como antes dançou, mas sem ser a mesma pessoa que outrora matou tantos, muito pelo contrário, agora desistindo de justificar-se. É a constatação de uma jornada sem propósito. A orientação sexual do jovem, em um outra instância, surge acompanhada de uma malícia sedutora. Os olhares que troca com o seu amigo Ramón (Chino Darín) são as sugestões necessárias. O Anjo, por exemplo, nunca mostra o menino resolvendo as suas vontades sexuais, exemplificando um sentimento de frustração intrínseco a sua mente. Porque não importa quantas casas forem roubadas, quantas pessoas forem mortas, a ingênua incompletude é tudo o que resta para o garoto, nem se preocupando em esconder a arma de um crime. Uma inocência que intensifica o processo de conciliação ácida do espectador com o personagem, que não o rejeita completamente, entretanto, entra nas suas artimanhas sedutoras.  O interesse do cineasta é justamente numa sedução do público, encantado.

Quanto mais perdido, mais imprevisível o garoto, menos respostas para as perguntas aparecem. A ação por si só que permanece para guiar-nos perante a narrativa. Como um acontecimento rotineiro, a primeira morte é encarada de uma maneira abrupta, contudo, conduzida com uma atenção diferenciada. O tom não é destruído subitamente, porém, transforma-se, devido o cuidado com que os personagens se envolvem com o crime inesperado. Luís Ortega é paciente, respira antes de prosseguir. A parcimônia, essa calmaria na abordagem que já trata de uma maneira singular um atentado tão horrendo, não retira o espectador de cena, em oposição, o imerge. E, paralelamente, nos indaga das causas para tanta dor sendo tratada como nada, como se não importasse o sangue derramado. Uma resposta para o desvio de caráter? A criação dos pais fora equivocada? O encerramento do longa-metragem apresenta ainda mais questões interessantes de serem abordadas,  porque “aparentemente” não podemos conviver no mundo com um anjo do mal.

O personagem principal em questão, consequentemente, incorpora consigo uma das construções de psicológico mais sensacionais vistas nos últimos anos. Carlos é quem representa, em seu semblante misterioso, uma juventude frustada e perdida. A sociopatia inerente ao protagonista é um desvio delineado perfeitamente pelo roteiro e pela direção, tensionando o espectador em todos os momentos que o personagem carrega uma arma na mão. O protagonista está apenas a procura de uma justificativa para matar, assim como encontrou uma justificativa para roubar indiscriminadamente, sem remorsos. “Você acha que uma pessoa normal faria tudo isso?”, questiona um policial, ao passo que o personagem responde positivamente à questão. O cineasta argentino joga com o espectador, fazendo-o se deliciar com as desventuras de uma vida criminosa, mas nem um pouco glamourosa. A satisfação do protagonista com o crime é a mesma satisfação do espectador com o sangue em cena.  Os crimes transformam-se em espetáculo cinematográfico.

  • Crítica originalmente publicada em 9 de novembro de 2018, em vista do Festival do Rio 2018, agora republicada por conta do lançamento comercial do longa.

O Anjo (El Angel) – Argentina, 2018
Diretor: Luis Ortega
Roteiro: Sergio Olguín, Luis Ortega, Rodolfo Palacios
Elenco: Lorenzo Ferro, Chino Darín, Daniel Fanego, Mercedes Morán, Cecilia Roth
Duração: 118 min.

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