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Crítica | O Astro (1977) – Capítulo 1

A ocasião faz o ladrão.

por Luiz Santiago
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Bem-vindos ao Plano Piloto, coluna semanal dedicada a abordar exclusivamente os pilotos de séries de TV.

Número de temporadas: 1
Número de episódios: 185
Período de exibição: 6 de dezembro de 1977 a 8 de julho de 1978
Há continuação ou reboot?: Sim. A Globo fez um rameke da novela em 2011.

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Janete Clair, figura importantíssima na construção da teledramaturgia brasileira, era uma artesã de narrativas que juntavam o cotidiano com situações bastante insólitas, criando tramas sobre a vida, suas complexidades, desafios e estranhezas. O Astro (vinda dois anos depois de outro grande sucesso da autora, Pecado Capital) carrega essa assinatura inconfundível, trazendo à tona núcleos de sobrevivência moldados por dualidades sociais e decisões que fazem a gente rir e chorar. Aqui, estamos num universo onde a ambição e a traição vivem em harmonia instável, ambientadas numa sociedade em transformação. A trama abre em 1962, na pacata Guariba, onde Herculano Quintanilha, vivido com carisma enigmático por Francisco Cuoco, vê seus planos de enriquecimento desmoronarem com a fuga de Neco (Flávio Migliaccio), que leva o dinheiro destinado à reforma da igreja local. A necessidade de fuga imediata não apenas coloca Herculano em uma trajetória que se afunila com outras vidas, anos depois, mas sintetiza as ideias que Janete Clair costura na novela: a vulnerabilidade da confiança, o fascínio por uma nova identidade e a busca por reparação. A estranhíssima abertura da obra, um mosaico visual com símbolos místicos iluminando partes do corpo de pessoas, embalados pela diferentona Bijuterias, de João Bosco, amplifica essa aura, preparando o terreno para o homem vivendo entre o charlatão e o extraordinário.

Quando a narrativa avança para 1974, Herculano reaparece (já no segundo capítulo) como um astrólogo e adivinho carismático, um reinventor de si mesmo que esconde as cicatrizes do passado sob uma camada de ilusionismo. O ator brilha ao dar vida a esse personagem multifacetado, equilibrando autenticidade e astúcia num desempenho que mantém o espectador intrigado. Neste primeiro capítulo, porém, pesa negativamente sobre o roteiro o fato de o personagem simplesmente desaparecer após o primeiro ato, deixando o público em dúvida sobre o futuro do personagem e sua relação aparentemente tão importante com a história geral (lembremos que o rosto de Cuoco está espalhado em praticamente toda a abertura da novela!). 

Diferente do percurso solitário de Herculano, a história apresenta a família Hayala, um clã libanês abastado cujas tensões revelam os conflitos entre tradição, modernidade e desejo pessoal. Salomão (Dionísio Azevedo), o patriarca, comanda os negócios com firmeza, enquanto Clô (Tereza Rachel), sua esposa, esconde suas insatisfações com hábitos supérfluos. O filho, Márcio, muito bem interpretado por Tony Ramos, é o ponto de ruptura: apaixonado por música, ele rejeita o mundo corporativo do pai, uma postura que culmina num gesto de revolta, ao jogar dinheiro pela janela da empresa, reforçando seu desprezo pelo valor material e a dor diante da morte miserável de “um homem bom”. Isso expõe o abismo geracional na casa dos Hayala e planta as sementes de uma conexão futura com Herculano, numa esfera mística que transformará a todos.

Enquanto os eventos se desenrolam, Janete Clair explora questões sobre conflitos geracionais e o papel das mulheres na sociedade brasileira da época. Lili, vivida por uma já maravilhosa Elizabeth Savalla, desafia convenções com sua independência feroz, enquanto Amanda (Dina Sfat) exibe uma força discreta e elegante que sustenta seu espaço num ambiente dominado por homens. A atriz, aliás, entrega uma atuação que se sobressai facilmente em todo o capítulo (a minha favorita), trazendo verdade e peso a Amanda, equilibrando os momentos mais teatrais da trama com uma naturalidade impressionante. 

Fica no ar uma mistura de curiosidade e leve desconforto. O piloto constrói bases sólidas, apresentando personagens cujas camadas prometem sustentar a narrativa, mas tropeça aqui e ali no encadeamento (o desaparecimento de Herculano é o pior dos casos, e me lembrou o caso de Charlô, em Guerra dos Sexos), sem contar as claras limitações estéticas, como o trabalho de câmera às vezes vazio, e a direção de arte que não mantém o mesmo nível para todos os núcleos. Ainda assim, os pontos altos prevalecem: as atuações marcantes e a habilidade de Clair em explorar nuances temáticas. À medida que Herculano inicia sua escalada, discute-se a linha tênue que separa o real do fabricado. Não se trata apenas de assistir a uma ascensão ou queda de alguém, mas de ver o que nos move a criar versões de nós mesmos — e o que resta quando a cortina desce e o truque é finalmente revelado.

  • Em homenagem a Francisco Cuoco, que nos deixou em 19 de junho de 2025, aos 91 anos.

O Astro (1977) – Capítulo 1 – Brasil, 6 de dezembro de 1977
Criação: Janete Clair
Direção: Daniel Filho
Roteiro: Janete Clair
Elenco: Francisco Cuoco, Dina Sfat, Elizabeth Savalla, Tony Ramos, Rubens de Falco, Tereza Rachel, Dionísio Azevedo, Carlos Eduardo Dolabella, Flávio Migliaccio, Ângela Leal, Edwin Luisi, Eloísa Mafalda, Ida Gomes, Heloísa Helena, Sílvia Salgado, Ênio Santos, Hélio Ary, Macedo Neto, Isaac Bardavid, José Luiz Rodi, Edson Silva, Marilena Cury, Leda Borba, Thelma Elita, Nestor de Montemar, Betinho
Duração: 51 min.

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