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Crítica | O Aviador

por Gabriel Carvalho
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“The way of the future… The way of the future… The way of the future… The way of the future… The way of the future…”

Contém spoilers.

O Aviador é uma das produções mais grandiosas e ambiciosas de Martin Scorsese. Enquanto em A Ilha do Medo, o cineasta revelaria antecipadamente, para o público, o que quer que estivesse trilhando narrativamente, tornando didático seus pensamentos, a reviravolta de intenções aqui, deturpando completamente as sensações do espectador pós-filme, já relembrando, imediatamente, sua experiência, encontra-se exatamente na última cena deste longa-metragem, sensível, mas distante do sentimentalismo. O poder da conclusão, por sua vez, remete ao passado, início da fita. Uma mãe limpa o seu filho, temendo doenças. O aviso é claro: “Você não está seguro.” O tempo voa, mas ninguém informa ao protagonista de O Aviador se segurança é um privilégio que ele irá possuir nos tempos modernos, dos aviões e do cinema. O menino, agora, é um homem, super excêntrico, querendo produzir filmes de forma independente, com rios de dinheiro a seu alcance. Os aviões são os personagens centrais dessa apresentação dos bastidores da produção de Anjos do Inferno. O diretor, antes de tudo, não está interessado nesse sentimento nostálgico que costuma ser adotado por cineastas ao abordarem cenários de época. O cinema pouco importa, a aviação pouco importa. Quem importa para Scorsese, dirigindo o texto adaptado de John Logan, é Howard Hughes (Leonardo DiCaprio), homem singular que buscou ser o melhor em tudo que ousou fazer na vida, sendo ajudado pela montanha financeira herdada e trapaceado pela sua própria existência. O saldo dessa equação, o caminho do futuro, você verá nas telas.

Os anos de demora no lançamento de Anjos do Inferno, já sendo um dos mais caros filmes da história, não são suficientes para frear os anseios do protagonista, agora querendo converter a sua obra – já finalizada – para o cinema falado. O cineasta não quer ficar para trás.  As excentricidades, em uma primeira instância, são vistas como peculiaridades cômicas e elegantes, detalhes que tornavam, até então, a interpretação de Leonardo DiCaprio um prato cheio para qualquer cinéfilo com vontade de se debruçar em uma caracterização atípica. O que Martin Scorsese não quer, contudo, é uma caricatura, evidenciando essa leveza inicial para, mais para frente, fortemente adentrar as profundezas do psicológico perturbado do cineasta. O começo nos encanta, por, aparentemente, estarmos diante de uma pessoa perfeccionista, querendo, simplesmente, ser a melhor e, por isso, não enxergamos deméritos nessa busca. O desenvolvimento, então, nos assusta, porque Leonardo DiCaprio, em sua atuação adiante, não é mais perfeccionista, mas completamente segmentado, destroçado. O relacionamento do personagem com Katherine HepburnCate Blanchett, em um excelente momento de sua carreira – é um ar de esperança. As similaridades entre os dois existem, ela o entende, mas, mesmo assim, o deixa. O que será daqueles que não o entendem? A trilha sonora de Howard Shore, ademais, imerge o espectador espaço-temporalmente nesse início, enquanto a cinematografia de Robert Richardson busca mantê-lo dentro do campo atrativo da obra – Howard Hughes examinando o avião é, visualmente, impressionante.

O pessimismo – ou, no caso, realismo – do discurso é um motor primordial para O Aviador decolar como uma das grandes produções da carreira de Martin Scorsese, saindo de uma ótica primeiramente triunfal, enganosa. Por incompleto, o longa realmente aparenta possuir essa doce sensação de ingenuidade. Ao chegarmos no terceiro ato, porém, estamos diante de um conflito bastante peculiar, envolvendo o monopólio de linhas aéreas. O protagonista, ao mesmo tempo, passa a ser investigado, em razão de nunca ter sido responsável por um avião durante a Segunda Guerra Mundial, apesar da verba recebida. As pessoas encaram como fraude, mas Howard encara como falha. Um acidente quase fatal, então, surge para desnorteá-lo de vez, sem retorno ao estado de outrora, caso ele sequer existisse. Nenhum acontecimento do roteiro não está à serviço da construção desse personagem. A cena, paralelamente, encontra-se em um espaço propício para Martin Scorsese reiterar o seu domínio da câmera. A edição de Thelma Schoonmaker também é reafirmada. O desespero de um desastre aéreo é equivalente ao desespero que acomete o personagem durante as suas crises. A mesma vontade de fugir. O mesmo caos frenético de quando suas fobias alimentam o seu estresse. O protagonista grita – “Eu sou Howard Hughes, o aviador” -, como se conseguisse ainda se identificar. Um momento único para traçar uma identidade, quase um epitáfio próprio. A mente, no resto do tempo, estará focada nos detalhes, nas inutilidades. O si se perde, reencontra-se, mas, no final das contas, não tem como retornar para o homem.

“Eu duvido que ele vai um dia poder gostar ou desgostar de algo novamente”, afirma o médico, informando os detalhes do futuro de Howard Hughes a Noah Dietrich (John C. Reilly), após uma avaliação do caso do paciente. A jornada, após a tragédia, torna-se de superação, uma temática compartilhada com tantas outras cinebiografias. A história de Howard Hughes, na verdade, nada tem de usual. Como superar alguma coisa quando um homem movido por um transtorno irrefreável estará usando, dentro de suas veias, de agora em diante, sangue de outras pessoas? As aparências são essas, de que veremos um homem alcançar a felicidade. Em relação a isso, Martin Scorsese até que é um pouco sádico com o espectador. A dependência, entretanto, mostra-se mais forte, com o retorno de Ava Gardner (Kate Beckinsale) – que deveria ter sido aproveitada mais – sendo crucial para a retomada do personagem, apresentando-se ao tribunal quando todos acreditavam que o aviador não mostraria o seu rosto novamente, após três meses em completo isolamento. O roteiro, por um lado, não se interessa em participar do julgamento efetivamente. Howard simplesmente aparece e vence. O desafio, por outro, é aparecer. As conquistas, portanto, realmente ostentam e presumem a volta por cima do personagem, nos minutos que restam de projeção. O lendário voo, em 1947, do Hughes H4 Hercules marca o clímax e encerramento da trajetória de Howard Hughes pelas quase três horas de duração do filme. O imenso pássaro de aço finalmente alça voo, mas a ocasião seria evento único da história. Voar, para nunca mais.

“Quando eu crescer, eu vou pilotar os aviões mais rápidos já construídos, fazer os maiores filmes de todos e ser o homem mais rico do mundo”, ressurge o fantasma do passado de Howard, na estupenda cena final de O Aviador. Momentos antes, o protagonista começa a ter uma crise, perguntando: “Quem são aqueles homens? Eles trabalham para mim?”. Noah Dietrich responde: “Todos trabalham para você, Howard“. A grande frase de efeito do longa-metragem, porém, não significa vitória, conquista, muito pelo contrário. O que resta para os próximos anos da vida de Howard Hughes, quando, enfim, o homem já se deparou com o ápice de sua jornada mundana e sonhos não mais existem? Qual o caminho do futuro? Crescer já cresceu. Os aviões mais rápidos já pilotou. Os maiores filmes de todos já fez. O homem mais rico do mundo se tornou. O Aviador não é encerrado no grande declínio da carreira de seu protagonista, mas trinta anos antes da morte deste personagem ímpar. A incompletude do filme, entretanto, não poderia ser mais ilusória. A verdadeira queda ainda estaria por vir. O quadro mental iria piorar. As requisições começariam a ser maiores. As crises mais frequentes. O espectador, entretanto, disso nada sabe, mas não importa o saber, senão o sentir. Martin Scorsese não precisa terminar a sua obra narrando o destino. O público percebe para onde os anos irão prosseguir. A decadência é a linha de chegada para muitos homens, por que seria diferente para esse aviador? Sabemos, portanto, o encaminhamento dado ao futuro. O caminho do futuro. O caminho do futuro. O caminho do futuro. O caminho do futuro. O caminho do futuro.

O Aviador (The Aviator) – EUA, 2004
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: John Logan
Elenco: Leonardo DiCaprio, Cate Blanchett, John C. Reilly, Alec Baldwin, Alan Alda, Kate Beckinsale, Ian Holm, Danny Huston, Gwen Stefani, Jude Law, Frances Conroy, Adam Scott, Matt Ross, Brent Spiner, Edward Herrmann, Willem Dafoe, Kenneth Welsh
Duração: 170 min.

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