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Crítica | O Barco: Inferno no Mar

por Ritter Fan
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Atenção: A crítica abaixo é, única e exclusivamente, da versão cinematográfica original de O Barco (Das Boot).

Tenho bastante dificuldade para verbalizar o que sinto por O Barco: Inferno no Mar, um dos poucos filmes não americanos que talvez seja até mais conhecido por aqui por seu título original alemão, Das Boot. Eu poderia encher esta crítica de superlativos e de frases de efeito para representar o quanto eu pessoalmente adoro a obra-prima máxima da carreia Wolfgang Petersen baseado em romance escrito por Lothar-Günther Buchheim em 1973 com base em suas experiências como tripulante do submarino alemão U-96, durante a Segunda Guerra Mundial, mas eu tenho apenas uma coisa muito rápida a dizer: se você está lendo esta crítica e não assistiu ao filme ainda (independente da versão – chego nelas muito em breve), pare o que está fazendo e esbalde-se com a obra. Mas, tentando não soar esnobe, mas já soando, esforce-se para assistir em uma sentada só sem interrupções e com as vozes originais, pois só assim para se ter a experiência completa.

Conhecido por ter três versões principais – há outras ainda, mas elas não são tão relevantes -, a que é objeto da presente crítica sendo a mais curta e a que foi originalmente lançada nos cinemas do mundo, seguida por uma “versão minissérie” de seis episódios de 50 minutos cada lançada em 1984, na Inglaterra, e, finalmente, uma versão do diretor de 208 minutos lançada nos cinemas em 1997, Das Boot foi a produção mais cara da Alemanha até a época. Além disso, a obra foi um impressionante tour de force técnico de Petersen e equipe que não só filmaram tudo cronologicamente (algo raríssimo na Sétima Arte por fazer tudo custar incomparavelmente mais mais caro) de forma a permitir que a passagem de tempo fosse naturalmente alterando o humor e a aparência dos atores, como construíram diversos cenários de interior e exterior do submarino em que o longa se passa quase integralmente (curiosamente, uma dessas versões foi usada por Steven Spielberg em Os Caçadores da Arca Perdida, em produção na mesma época), além de uma réplica completa e em tamanho real da embarcação.

O foco da produção era o realismo técnico absoluto ou o mais próximo disso que as exigências cinematográficas permitissem, lógico, o que levou ao uso de consultores especialistas em submarinos (o autor do romance, porém, acabou não gostando do filme, por incrível que pareça). Em circunstâncias normais, isso poderia levar um longa de ficção a ficar preso por amarras invisíveis que o levasse a ser um semi-documentário, mas Petersen demonstrou-se um exímio cineasta ao conduzir a obra quase como se ela fosse do gênero horror, trabalhando apenas espaços confinados, quase não mostrando o exterior do submarino em patrulha pelo Oceano Atlântico e criando tensão muito mais pelo que não é visto e pelo que não é ouvido, do que o contrário, criando uma sensação de claustrofobia que raras vezes tive a oportunidade de testemunhar em uma obra cinematográfica, daquelas que nos faz ficar com as palmas das mão suando.

A mágica da câmera do diretor é inescrutável. Mesmo “decupando” as sequências mentalmente e tentando entender os recortes do submarino feitos no set de filmagens, a fluidez do trabalho é tão impressionante que por diversas vezes o espectador é quase que literalmente transportando lá para dentro, algo que é amplificado sobremaneira por uma arquitetura sonora invejável que vai desde o silêncio absoluto (ensurdecedor!) até o caos completo quando a concussão de minas de profundidade atingem a embarcação. Por um lado – e sei que isso parecerá incongruente com o que eu disse logo acima – parece que estamos vendo cenas reais feitas durante a guerra por um correspondente particularmente corajoso, mas, por outro, Petersen não se amolda à abordagem documental que normalmente pede câmera na mão, filmagem granular, desorganização de mise-en-scène e outros elementos familiares. Trata-se indubitavelmente de um filme de ficção, mas uma ficção que desafia a fronteira da realidade.

Outro grande acerto da produção – que, anos antes, era para ter sido americana, com atores como Robert Redford – foi a escalação de seu elenco. Apesar de a história ser contada a partir do ponto de vista do alter-ego do autor do romance, o Tenente Werner (Herbert Grönemeyer), correspondente de guerra que tem a função de registrar em forma de diário e fotograficamente a vida dos valorosos tripulantes da marinha do Terceiro Reich, o grande destaque fica por conta do estoico capitão (sem nome) vivido por Jürgen Prochnow, pois é a postura cínica do personagem em relação à guerra e ao comando de seu país, em contraste com a visão mais inocente do próprio Werner e da tripulação mais jovem do U-96, que estabelece o tom da narrativa e que conta a história principal que, como em todo grande filme de guerra, não é, claro, a guerra, mas sim a insensatez da guerra.

Aliás, esse é um dos poucos filmes em que o espectador é convidado – ou seria melhor dizer desafiado? – a simpatizar e, mais ainda, a torcer por nazistas. Claro que a clara posição filosófica do capitão, apesar de sua lealdade à hierarquia de comando, facilita essa tarefa, assim como o fato de haver relativamente pouca iconografia nazista e apenas um personagem abertamente nazista, mas Petersen propositalmente nos faz olhar os marinheiros com outros olhos. O confinamento e isolamento deles em uma lata de sardinha no fundo do Atlântico e do Mediterrâneo é a ferramenta que o diretor usa para igualar os tripulantes ao mais heroico dos soldados dos Aliados, ao mesmo tempo funcionando como uma forma de distanciar esse recorte da guerra do conflito armado que, mal ou bem, estamos acostumados a ver nas telonas e telinhas. Pelo menos para os fins de Das Boot, não há bandeiras, não há lados, não há outra posição que não seja a do ser humano lutando por algo que não entende e com que não se relaciona e fazendo sacrifícios terríveis neste processo.

Diria até mesmo que o grande trunfo do longa é justamente nos fazer olhar para os homens e não para os soldados, afastando uniformes e patentes e colocando a frente corações e mentes. O desafio que Petersen propõe é justamente o de nos fazer perceber que o conflito armado, apesar de inevitável (e, pessoalmente, acho que até faz parte da natureza humana), não deve ter o condão de nos retirar a humanidade, pois é justamente aí que realmente perdemos as batalhas e as guerras, que nos tornamos meros peões robóticos de uma estrutura erigida não para nós, mas apesar de nós. O submarino de O Barco é um microcosmo da mente humana e cada blip do sonar é um batimento cardíaco…

O Barco: Inferno no Mar (Das Boot – Alemanha Ocidental, 1981)
Direção: Wolfgang Petersen
Roteiro: Wolfgang Petersen (baseado em romance de Lothar G. Buchheim)
Elenco: Jürgen Prochnow, Herbert Grönemeyer, Klaus Wennemann, Hubertus Bengsch, Martin Semmelrogge, Bernd Tauber, Erwin Leder, Martin May, Heinz Hoenig (Heinz Hönig), Uwe Ochsenknecht, Claude-Oliver Rudolph, Jan Fedder, Ralf Richter (Ralph Richter), Joachim Bernhard, Oliver Stritzel
Duração: 149 min.

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