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Crítica | O BGA – O Bom Gigante Amigo, de Roald Dahl

por Ritter Fan
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estrelas 5,0

O galês Roald Dahl (1916 – 1990) foi um dos grandes criadores modernos de fábulas. Apesar de ter escrito contos para adultos, notabilizou-se mesmo por seu trabalho voltado para o público infanto-juvenil, com obras fantásticas como James e o Pêssego Gigante (1961), Charlie e a Fábrica de Chocolates (1964), O Fantástico Sr. Raposo (1970) e Mathilda (1988), isso para ficar apenas entre aqueles adaptados para o cinema.

O BGA – O Bom Gigante Amigo, publicado em 1982 e baseado em conto do próprio autor de 1975, Danny, o Campeão do Mundo, é uma homenagem à sua filha Olivia, que perdera em 1962 para o sarampo. Apesar de o livro já ter sido adaptado em uma animação para televisão em 1989, ele permaneceu razoavelmente desconhecido, notadamente nos países de língua não-inglesa. Mas O BGA é mais uma fábula moderna do autor que, assim como os contos originais dos Irmãos Grimm e as fábulas de Esopo, contém forte lição de moral em uma roupagem imaginativa com pitadas sombrias e até mesmo bastante violentas.

É que, em sua obra, Dahl nos conta a história da órfã Sofia que, na Hora das Bruxas (lá pela madrugada), vê, pela janela, um gigante soprando uma corneta dentro do quarto de crianças na rua onde vive. Não demora e esse gigante a captura, levando-a para a Terra dos Gigantes, onde ela aprende que ele é o gigante bonzinho – o único, na verdade -, mas que existem outros gigantes maiores ainda que ele que toda noite vão a países diferentes do mundo comer seres humanos. Sim, isso mesmo. Dahl não se furta em narrar, por intermédio do simpático e bonzinho gigante, como os gigantes mais gigantes adoram mastigar criancinhas e adultos mundo afora (menos gregos, pois os gregos, aparentemente, têm gosto ruim), cada um com seu gosto particular. Uns gostam de noruegueses pois têm gosto de bacalhau, outro de mexicanos, pois são apimentados. Uns preferem crianças, pois são mais macias e outros adultos e famílias inteiras às vezes.

Tudo é contado com um senso de deslumbramento e visto a partir do ponto de vista da menininha vestida ainda com sua camisola branca. E, como o BGA é semi-alfabetizado apenas, a leitura torna-se duplamente divertida e até desafiadora para os menores. É que Dahl quase que cria um língua própria para o BGA, com palavras compostas de versões de palavras verdadeiras em frases que às vezes exigem interpretação e até mesmo tradução, algo que vem a partir das frases e esclarecimentos da própria Sofia que, claro, faz as vezes do leitor nesse mundo fantástico que o autor cria. Não se trata, aqui, de um trabalho linguístico altamente sofisticado como vemos na leitura de Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, mas sim uma versão simplificada da ideia contida no trabalho desse outro autor britânico.

É como ler algo escrito por alguém com conhecimentos rudimentares da língua, sem que tenha tido oportunidade de muito contato com ela. Por exemplo, a única comida do BGA é um legume chamado snozzcumber, que reúne um prefixo relacionado com “meleca” ou snozz e um sufixo retirado de “pepino” ou cucumber. O resultado final é perfeito, pois este legume é intragável e o BGA o odeia, mas, por se recusar a comer humanos, não tem alternativa que não comê-lo. O mesmo vale para o refrigerante que ele toma, frobscottle, e  para as flatulências poderosas que ele causa, ou whizpopping. Mas não são apenas palavras soltas inventadas que Dahl escreve, pois frases inteiras saídas da boca do BGA possuem seu próprio ritmo e característica, com erros crassos de inglês justificados pelo fato de o gigante nunca ter tido qualquer educação formal.

Assim, o livro torna-se um divertido exercício de leitura e às vezes adivinhação para os menores, que certamente não só reconhecerão as palavras, como poderão, por contraste, reconhecer a forma correta de se falar e escrever. A versão em português do livro, traduzida por Angela Mariani, é um primor de criatividade. Mariani toma liberdade nas traduções, mas é certeira ao manter vivo o espírito da obra. Da mesma forma que palavras novas são criadas em inglês, ela não se furta de criar suas próprias, em português, sempre de maneira que faça sentido dentro da narrativa. Assim, snozzcumber torna-se “nabobrinha”, frobscottle o complicado e quebra-língua “clacloclola” e whizzpopping o hilário “fizpunzinho”. Além disso, há o nome dos gigantes devoradores de criança, como Fleshlumpeater e Manhugger, que a tradutora verte, respectivamente, como “Comecarnecrua” e “Agarramigo”.

No entanto, O BGA vai além da superfície imaginária e lida com questões realmente interessantes e relevantes para crianças assim como para adultos. Há a questão do preconceito em relação a pessoas diferentes (como a própria Sofia percebe o BGA, por exemplo), o bullying (como os demais gigantes tratam o BGA) e, principalmente, como nós, humanos, nos percebemos. Sofia acha horrível que gigantes comam “serumanos”, mas não para pensar o que exatamente os mesmos “serumanos” fazem com o próximo ou com outras criaturas que os cercam. O BGA é a voz da ingenuidade, mas que desnuda assuntos controversos e que são difíceis de aceitar justamente porque afetam diretamente nosso dia-a-dia. No lugar de uma lição de moral distante, talvez não aplicável de imediato, o que é possível extrair desta obra de Dahl é capaz de mexer com nossas convicções sobre o certo e o errado, colocando o “serumano” no mesmo patamar dos gigantes carnívoros tão abertamente condenados.

O BGA – O Bom Gigante Amigo é ótima leitura para crianças e para adultos. Um livro que diverte e desafia os pequenos em medidas iguais e que faz até os adultos pensarem sobre suas ações.

O BGA – O Bom Gigante Amigo (The BFG, Reino Unido – 1982)
Autor: Roald Dahl (baseado em conto do mesmo autor)
Ilustrações: Quentin Blake
Tradução para o português: Angela Mariani
Publicação original: 1982
Editora original: Jonathan Cape
Editoras no Brasil: Editora 34
Páginas: 285

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