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Crítica | O Caos Rastejante e O Prado Verde, de Lovecraft e Winifred Jackson

Horror reticente.

por Luiz Santiago
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Entre as figuras esquecidas do círculo literário de H. P. Lovecraft, poucas são tão enigmáticas quanto Winifred Virginia Jackson (1876-1959), poetisa de Massachusetts cujo talento chamou a atenção do mestre do horror cósmico. Foi através da United Amateur Press Association, por volta de 1915, que os dois se conheceram. Ela ainda assinava como Winifred Virginia Jordan, casada com Horace Jordan, e publicava versos que Lovecraft descreveria como “cheios de uma harmonia lírica de desenvolvimento requintado“. Jackson afirmava que uma misteriosa “Voz” ditava seus poemas: trabalhando apenas com lápis, para não perturbar essa presença com o ruído da máquina de escrever, chegou a produzir 96 poemas em poucas semanas, durante uma estadia no Maine, seu estado natal.

A parceria criativa entre Jackson e Lovecraft aconteceu num período de mudanças pessoais para ambos: ela se divorciou em 1919, retomando o nome de solteira, enquanto ele lidava com a doença da mãe, que viria a falecer em 1921. Durante a epidemia de gripe espanhola de 1918 – 1919, os autores compartilharam sonhos que se transformariam em contos: o primeiro deles, O Prado Verde, foi escrito neste mesmo biênio; e o segundo, O Caos Rastejante, foi escrito no final de 1920.

A correspondência entre os dois escritores, que tinha um código bem estranho de destruição (Jackson exigia que suas cartas fossem queimadas, e Lovecraft geralmente obedecia), acabou no segundo semestre de 1921, coincidindo com o surgimento de Sonia Greene na vida do escritor, que mais tarde confessaria ter “roubado” Lovecraft de Jackson, e com o aprofundamento do relacionamento dela com o influente poeta e crítico afro-americano William Stanley Braithwaite, com quem fundaria a editora B. J. Brimmer Publishing Company.

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O Prado Verde

É preciso admitir: o conceito deste conto é muito chamativo. Fruto da colaboração entre H. P. Lovecraft e Winifred V. Jackson, O Prado Verde foi escrito entre 1918 e 1919, mas só veio à luz na primavera de 1927, pelas páginas da revista The Vagrant. A atmosfera que envolve a narrativa carrega o peso e o fascínio do fantástico: uma vila no Maine, abalada pela queda de um meteoro; um livro de propriedades impossíveis, fundido à própria rocha; e uma mensagem deixada por um Ser que teria sido humano, agora possivelmente transfigurado numa consciência imortal. O cenário tem força própria e abre as portas para o nosso mergulho nas fronteiras entre o sonho e a sanidade.

Essa proposta, no entanto, encontra uma barreira na falta de camadas que sustentem o que deveria ser o seu clímax. O leitor acompanha a trajetória de um personagem solitário, lançado à deriva (cósmica) numa ilha que aos poucos se desintegra, cercado por uma floresta hostil, de um verde maligno, e por um mar muito cheio de vapores bizarros. O espaço-limite entre céu e água, entre paisagem e abismo, é criado com um detalhismo lírico que, como sabemos, bebe diretamente nos escritos de Lord Dunsany, influência marcante na fase onírica de Lovecraft. Ainda assim, o detalhamento da ambientação parece perder força à medida que se aproxima do mistério com a tal revelação que “não pode ser dita” e que joga, nas costas do leitor, a responsabilidade por construir sozinho toda a carga simbólica e narrativa que falta.

Não há problema nenhum em usar “o indizível” como motor de tensão. A literatura de horror sempre usou esse recurso. Só que, como toda ferramenta criativa, seu efeito depende diretamente do que lhe antecede. Aqui, mais uma vez, a figa estilística de Lovecraft tem ares de solução mágica (ou seria… preguiça crônica?), desviando-se da construção sólida de pistas, sugestões, presságios ou camadas simbólicas que justificassem o final abrupto e as tais “visões que ninguém ousa dizer”, vulgo, “vício narrativo e irritante do autor”. O resultado é um enredo repleto de perguntas, com pouquíssimos elementos que permitam dar densidade ou imaginação ativa ao público. A ilha se desfaz. A floresta sussurra coisas doentias. O canto no prado verde atrai e traz conforto, mas logo depois provoca desconforto existencial. E ainda assim, nada se costura de fato. Há movimento, mas não há verdadeira progressão dramática. Tudo parece conter uma promessa de horror que vai sumindo com cada pedaço da ilha que cai no mar.

A estrutura de “manuscrito descoberto”, um dos ingredientes recorrentes do horror ocultista e do próprio Lovecraft de que eu verdadeiramente gosto, até consegue sustentar o mistério inicial e acender a nossa curiosidade. A descrição do livro com páginas incorruptíveis e capa de substância indestrutível alimenta muito bem a estranheza de tudo. Mas esse verniz não basta para preencher a lacuna de compensação da história. A narrativa do personagem soa, em muitos momentos, como um exercício de estilo que esqueceu de acabar o que começou. Mesmo a citação de Stethelos, cidade do Ciclo dos Sonhos, aparece mais como uma aleatoriedade que como parte orgânica desse universo.

A ideia de que o caderno foi escrito por alguém que já foi humano, mas que agora se encontra além da carne e do tempo, condenado a uma consciência perpétua e ao desejo impossível de morte, é o ponto mais poderoso do conto. Essa noção desloca o horror para o campo do metafísico, operando não pela ameaça externa, mas pela condenação da eternidade sem forma, sem lugar e sem alívio. O problema é que a força dessa ideia não é desenvolvida. Ela é sugada pelo excesso de reticências e possibilidades. Nesse mar de descrições acanhadas, o conto ainda oferece coisas interessantes. Há um encanto genuíno na música que vem do prado verde, que parece carregar idiomas esquecidos e lamentos cosmológicos (eu amo esse tipo de mitologia!). Há beleza nas percepções não-sensoriais do narrador, que passa a perceber intenções no sussurrar das folhas e até no silêncio. Só que mesmo essas qualidades poéticas acabam presas num esquema que acena para o mistério sem organizá-lo, tornando o medo algo mais sugerido do que sentido, de fato. 

O saldo é agridoce. Existe uma proposta rica e provocativa sendo esboçada em O Prado Verde, e parte disso sobrevive à leitura, que é boa. O texto é intrigante, seu artifício narrativo faz a gente arregalar os olhos e há lampejos de beleza espalhados por toda parte. Mas aquilo que deveria brilhar mesmo, cai num vazio narrativo… por falta de contexto e excesso de mistérios incompletos. E penso que isso é ainda pior porque não é uma situação isolada na bibliografia do autor.

O Prado Verde (The Green Meadow) — EUA, 1927
Autores: H. P. Lovecraft e Winifred V. Jackson
Publicação original: The Vagrant (Primavera de 1927)
23 páginas

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O Caos Rastejante

The Crawling Chaos é uma tentativa de transformar experiências oníricas em narrativa de horror cósmico que, lamentavelmente, tropeça em suas próprias ambições. Publicada em abril de 1921 na revista United Cooperative, sob os pseudônimos de Elizabeth Berkeley e Lewis Theobald, a obra foi a segunda e última colaboração entre Lovecraft e Jackson, seguindo os passos de O Prado Verde. Jackson deu a ideia geral do conto (baseado em seus sonhos, como sempre) e Lovecraft moldou o texto. O próprio escritor confessou, mais tarde, que usou o título simplesmente porque “gostou do som“, emprestando-o de seu poema Nyarlathotep que, é bom deixar claro, não tem nada a ver com a presente história.

Logo nas primeiras linhas, percebemos Lovecraft imitando o estilo ornamentado e precioso de Lord Dunsany, com descrições que, embora líricas e charmosas, comprometem a urgência que deveria ter uma saga apocalíptica. Uma forte dose de ópio durante “o ano da peste” serve como ponto de partida para os eventos fantásticos do texto, fazendo a gente cair numa geografia absurda que sustenta toda a ação: uma península misteriosa, cercada simultaneamente por três oceanos de cores diferentes. Penso que esses oceanos são mais um capricho visual do que elemento narrativo significativo, especialmente quando consideramos que dois deles existem apenas “porque sim“, servindo como cenário exótico para a fuga do protagonista, quando uma única força aquática maligna teria sido infinitamente mais poderosa e dramaticamente coesa para a história.

Quando abandona temporariamente seus floreios, o autor consegue dar uma concepção apocalíptica genuinamente aterrorizante: um oceano demoníaco que devora toda a superfície terrestre antes de cair no núcleo, provocando uma explosão que aniquila tudo. Essa destruição absoluta, que termina com os planetas restantes “procurando por sua irmã perdida“, tem o ótimo peso do horror cósmico do autor e nos deixa bastante aflitos. Infelizmente, os elementos de salvação da segunda metade atrapalham essa força temática, trazendo seres celestiais/extraterrestres (uma criança e uns jovens cantores) que se materializam sem justificativa e oferecem escape através das cidades místicas de Teloe e Cytharion, numa (possível) reviravolta que cheira a Deus ex machina. Daí a gente lê três linhas e esses personagens desaparecem subitamente, deixando a sensação de que foram inseridos por um motivo que acabou não sendo trabalhado na história.

Fica a impressão clara de uma oportunidade perdida: uma ideia absurdamente assustadora sobre a fragilidade cósmica da existência terrestre, comprometida por um texto um pouco confuso e com caprichos desnecessários — sem contar na resolução parcialmente insatisfatória. Jackson e Lovecraft criaram, sem perceber, uma metáfora perfeita para seu próprio trabalho: belos momentos de transcendência cósmica que, ao final, não conseguem impedir que tudo desmorone nas águas turbulentas de uma narrativa que nunca soube exatamente aonde queria chegar.

O Caos Rastejante (The Crawling Chaos) — EUA, abril de 1921
Autores: H. P. Lovecraft e Winifred V. Jackson
Publicação original: United Cooperative
21 páginas

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