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Crítica | O Casamento de Maria Braun

por Luiz Santiago
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É possível que O Casamento de Maria Braun (1979) seja o filme mais conhecido de R. W. Fassbinder. Famoso por iniciar a Trilogia da Alemanha Ocidental*, Maria Braun acompanha a personagem-título de 1945 a 1954 – e nós sabemos exatamente o ano por causa da transmissão radiofônica da Copa do Mundo daquele ano, quando a Alemanha Ocidental foi campeã, em cima da Hungria.

A protagonista do longa é interpretada por Hanna Schygulla, que não filmava com Fassbinder desde Amor e Preconceito (1974), uma pausa feita após desentendimentos artísticos entre os dois, segundo Fassbinder, por uma “crise de estrelismo” da atriz, algo que a amizade que tinham há anos conseguiu superar, fazendo-os retomar a parceria que duraria até Lili Marlene (1981), realizado um ano antes da morte do cineasta.

Quando falamos em Trilogia da Alemanha Ocidental, falamos de filmes que não possuem uma história contínua, mas sim um tema contínuo. Os longas que formam a tríade tem protagonistas diferentes vividas por diferentes atrizes – Hanna Schygulla como Maria Braun; Barbara Sukowa como Lola e Rosel Zech como Veronika Voss –, mas todas elas são ambientadas na Alemanha pós-Guerra, onde vemos mulheres lutando para sobreviver, uma jornada que começa mais ou menos sutil aqui em Maria Braun e termina em total desesperança e agonia em Veronika Voss.

A ideia geral para o filme surgiu da parceria de Fassbiner com Alexander Kluge em Alemanha no Outono (1978), e inicialmente não possuía foco em uma personagem feminina, abordagem modificada quando o primeiro tratamento do roteiro foi apresentado aos produtores. Além da personagem feminina, havia uma forte presença histórica, a crítica ferrenha de Fassbinder ao “milagre econômico” da Alemanha nos anos 1950, que ele trata em paralelismo com a vida de Maria Braun, que passa de uma mulher que depende da figura masculina para existir (a procura patética dela no início da fita) a notável mulher bem sucedida, ecoando características da personagem de Margit Carstensen em A Liberdade de Bremer (1972).

É através dessa via política que o espectador deverá entender o filme. A relação entre os personagens, a citação dos sindicatos e seus acordos com os empresários, a presença dos militares americanos na Alemanha ocupada, todas essas iscas socioeconômicas se unem para formar um panorama de mudanças. Assim como a vida de Maria Braun, a Alemanha estava em desenvolvimento, como se tivesse nascido nos momentos iniciais do filme. Ela é o choro do bebê que ouvimos durante os créditos de abertura e cresce rapidamente à medida que alguns de seus habitantes também crescem e morrem.

Maria Braun escala camadas sociais como se fosse a única coisa capaz de mantê-la viva, a motivação que precisava para viver. Seus desejos como mulher, como pessoa, nunca foram plenamente realizados (vide o tempo que ela passa casada e a ironia do título do filme), e essa esfera profissional de sua vida parece ser uma escapatória capaz de fazê-la parcialmente feliz.

Em meio ao humor negro e negativos de fotografias dos líderes políticos da Alemanha Ocidental após a Segunda Guerra (Konrad Adenauer, Ludwig Erhard, Kurt Georg Kiesinger e Helmut Schmidt, o único com fotografia positiva por ser o o Chanceler em exercício no momento em que o filme foi feito) Fassbinder revisita o universo estético de Douglas Sirk, utilizando majoritariamente câmera através de objetos e compondo planos milimetricamente ajustados em seu interior, porém, com menor impacto geral, modelo cujo objetivo era destacar unicamente as ações através de uma falsa crueza (o filme pode parecer simples a olhos pouco atentos) uma mudança em relação às obras imediatamente anteriores, Em Um Ano de 13 Luas (1978) e Despair – Uma Viagem Para a Luz (1978).

O espectador ainda pode observar claras referências a O Anjo Azul (1930) e Alma em Suplício (1945), entrecortadas a canções icônicas de Glenn Miller como Moonlight Serenade e In The Mood. O humor ácido e trágico do final é a coroação da obra e a forma que o diretor encontrou para contornar uma pequena barreira expressa pelos produtores no primeiro tratamento do roteiro, onde o suicídio de Maria Braun era evidente. Na versão filmada, porém, há a abertura para esta conclusão ou para um fatídico acidente, ocorrido por conta de um “esquecimento”. Todavia, se o espectador prestar atenção no desenvolvimento da personagem e naquele momento exato de sua vida, encontrará uma resposta que se encaixe perfeitamente.

Apesar de ter um período conturbado de filmagens e constante aumento do valor do orçamento (dizem que Fassbinder gastava muito dinheiro com consumo de cocaína, uma saída para o stress e o sono constantes, porque ele filmava Maria Braun durante o dia e escrevia o roteiro da série Berlin Alexanderplatz à noite), O Casamento de Maria Braun foi um grande sucesso de crítica e bilheteria, abrindo mais facilmente as portas para Fassbinder realizar seus filmes seguintes. Com este filme e A Terceira Geração, realizado no mesmo ano, o diretor finalizava uma década extremamente produtiva — foram nada menos que 33 trabalhos entre 1970 e 1979, e nenhum foi curta-metragem! — e adentrava na fase final de sua carreira. O Casamento de Maria Braun certamente foi um divisor de águas. Os filmes seguintes de Fassbinder seriam mais apegados à mulher e à história, à política, formando o coração dessa fase histórica que se iniciara com Bolwieser – A Mulher do Chefe de Estação (1977) e que em seu último filme, Querelle (1982), apesar do contexto, já apontava para um novo momento, que infelizmente não tivemos a oportunidade de conhecer, devido à morte precoce do diretor.

* A Trilogia da Alemanha Ocidental é composta pelos filmes O Casamento de Maria Braun (1979), Lola (1981) e O Desespero de Veronika Voss (1982). Muitas vezes a trilogia é divulgada pela sigla BRD, de Bundesrepublik Deutschland (República Federal da Alemanha).

O Casamento de Maria Braun (Die Ehe der Maria Braun) — Alemanha Ocidental, 1979
Direção: Rainer Werner Fassbinder
Roteiro: Rainer Werner Fassbinder, Pea Fröhlich, Peter Märthesheimer, Kurt Raab
Elenco: Hanna Schygulla, Klaus Löwitsch, Ivan Desny, Gisela Uhlen, Elisabeth Trissenaar, Gottfried John, Hark Bohm, George Eagles, Claus Holm, Günter Lamprecht, Anton Schiersner, Lilo Pempeit, Sonja Neudorfer, Volker Spengler
Duração: 120 min.

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