Lovecraft rascunhou O Chamado de Cthulhu durante o verão de 1926, uma obra que tem tanto uma gigantesca influência quanto alguns vícios e limitações de seu criador. A narrativa, que começou a brotar ainda em 1919, através de um sonho do próprio autor, transformou-se numa das pedras fundamentais do horror [cósmico] moderno. Publicada na revista Weird Tales em fevereiro de 1928, após uma rejeição inicial do editor Farnsworth Wright, a história estabelece os alicerces dos Mitos de Cthulhu, universo ficcional que se expandiria muito além das intenções originais. Curiosamente, foi necessária a mentira estratégica de Donald Wandrei, amigo de Lovecraft, alegando que o autor considerava submeter o texto a outra publicação, para que a obra finalmente viesse à luz.
Estruturada como um dossiê acadêmico fragmentado, às vezes bem chatinho de ler, a narrativa acompanha Francis Wayland Thurston, que herda os perturbadores papéis de seu tio-avô George Gammell Angell, professor de linguística da Universidade Brown. Essa documentação traz um conjunto de descobertas inquietantes sobre influências sobrenaturais que se manifestam através de sonhos coletivos, esculturas bizarras e rituais sangrentos espalhados pelo mundo. O protagonista mergulha progressivamente nesse labirinto de informações conectadas, tocando em pontos que talvez não devesse, descobrindo um mundo oculto que se desenha através de três narrativas entrelaçadas, cada uma mais perturbadora que a anterior.
Primeiro, deparamo-nos com Henry Anthony Wilcox, um estudante de arte de Rhode Island que esculpe um baixo-relevo baseado em delírios sobre “grandes cidades ciclópicas de blocos titânicos e monólitos lançados aos céus“. Suas criações nascem de sonhos com referências constantes a Cthulhu e R’lyeh, manifestações de uma influência cósmica que se espelha simultaneamente nos relatos de psicólogos, músicos e outros artistas — pessoas que, ironicamente, são descritas como “viciados” ou “vagabundos“, numa caracterização que revela tanto o preconceito da época quanto a marginalização daqueles mais sensíveis às perturbações cósmicas. Lovecraft demonstra aqui sua capacidade de conectar o sublime artístico com o horror existencial, sugerindo que a verdadeira criatividade pode ser uma porta de entrada para realidades insuportáveis.
Paralelamente, a investigação conduz aos eventos de 1908, quando o oficial de polícia John Raymond Legrasse, de Nova Orleans, apresenta a uma sociedade arqueológica uma estatueta de pedra verde-acinzentada descoberta durante uma batida policial que interrompeu rituais grotescos envolvendo sacrifícios humanos. Os cultistas capturados adoram os “Grandes Antigos” e aguardam o retorno de Cthulhu. Diversos elementos racistas aparecem no texto durante essas descrições, reflexo das atitudes problemáticas de Lovecraft que se manifestam através de sua caracterização de grupos étnicos como símbolos do aterrorizante. O autor utiliza figuras como “mulatos” e “mestiços” como representações do horror, revelando preconceitos que não são isolados e nem mesmo superficiais em sua obra, muitas vezes até atrapalhando as cenas, por conta de uma caricatura étnico-racista desnecessária, mesmo pensando no contexto interno da obra.
Então temos a parte mais lenta e difícil de digerir: a experiência do marinheiro Gustaf Johansen, único sobrevivente da embarcação Alert, que acidentalmente desperta a criatura na cidade-pesadelo de R’lyeh. Aqui está uma das maiores contradições da obra: Cthulhu deveria representar o terror cósmico absoluto, uma entidade tão poderosa que sua mera presença causaria loucura instantânea. Contudo, o confronto final é simplesmente patético, com Johansen colidindo seu pequeno barco contra a cabeça da criatura e causando uma sopa de gosmas e fedor. Esta solução desastrosa me lembra finais mal resolvidos de outras sagas populares, transformando o que deveria ser um “super deus” e o “mal total” numa ameaça derrotável por um barco, contradizendo fundamentalmente a magnitude pretendida do terror cósmico no conto e nesse Universo.
Depois de ler várias obras, o leitor fica saturado dos cacoetes lovecraftianos que representam uma mistura de escrita pobre e falta de imaginação atmosférica para a própria mitologia, resumindo qualquer clímax de horror em “coisa indizível“; “não podia falar mais porque enlouqueceria“; “não há palavras para descrever” e expressões similares. Embora inicialmente eficazes, esses termos viram uma repetição vergonhosa (e meio cômica) nos contos do autor, enfraquecendo o impacto pretendido. Este conto, por exemplo, é minado por descrições e criação de atmosferas que não se completam e por um encerramento ruim, provando que é, talvez, a obra mais superestimada do autor, apesar de ter seu valor individual e ter claramente exercido uma influência enorme na literatura do gênero. Essas falhas, porém, não invalidam as qualidades mais sensíveis da narrativa. Lovecraft molda uma visão niilista onde o mal paira por trás das aparências, algo transcendente que excede qualquer capacidade de resistência individual e diante do qual não há redenção: ou é a loucura, ou o fanatismo escravizador da mente e das vontades, ou a morte.
A obra dialoga com influências literárias significativas que ampliam sua força cultural. O soneto The Kraken, de Alfred Tennyson (1830), parece ter inspirado a concepção de uma criatura aquática gigantesca adormecida no fundo do oceano, destinada a emergir em uma era apocalíptica. Guy de Maupassant, em O Horla (1887), já explorara seres invisíveis que influenciam mentes humanas como indicação de seres extraterrestres. Arthur Machen, em The Novel of the Black Seal (1895), reuniu conhecimentos dissociados para revelar a sobrevivência de seres antigos e horríveis. Lovecraft absorveu essas influências, mas também se inspirou em Lord Dunsany, especialmente em The Gods of Pegana (1905), que retrata deuses constantemente adormecidos para evitar as consequências de seu despertar. Historicamente, vale mencionar que o “leve terremoto” referido aqui, provavelmente corresponde ao terremoto de Charlevoix-Kamouraska de 1925, demonstrando como Lovecraft incorporava eventos reais contemporâneos em suas ficções cósmicas. Além disso, a novela The Moon Pool (1918), de A. Merritt, sobre a qual Lovecraft “frequentemente se entusiasmava“, parece ter influenciado a concepção da “porta lunar” que, quando inclinada, conduz personagens a uma região inferior de maravilhas e horrores, similar à imensa porta cuja abertura inadvertida pelos marinheiros permite que Cthulhu surja em R’lyeh.
O Chamado de Cthulhu permanece como uma obra de contradições fascinantes: pioneira (ou mais acabada) na concepção do horror cósmico, influente além de qualquer medida razoável, mas também limitada (dramaticamente) por preconceitos de época e soluções narrativas risíveis. Sua popularidade me lembra certos livros e contos que os fãs fazem parecer muito melhor do que realmente são, quando examinados minuciosamente. Contudo, seu legado persiste porque conseguiu articular, mesmo imperfeitamente, medos primordiais sobre nossa posição no cosmos, transformando-se num marco fundador que continua assombrando a imaginação.
O Chamado de Cthulhu (The Call of Cthulhu) — EUA, Fevereiro de 1928
Autor: H. P. Lovecraft
Publicação original: Weird Tales
Ilustração original: Hugh Doak Rankin
Edição lida para esta crítica: Editora Hedra, 2015
Tradução: Guilherme da Silva Braga
64 páginas