Home QuadrinhosOne-Shot Crítica | O Combate dos Chefes (Asterix)

Crítica | O Combate dos Chefes (Asterix)

por Ritter Fan
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Depois de levarem Asterix e Obelix para um frenético passeio pela Gália em Uma Volta pela Gália com Asterix e até para outro continente em Asterix e Cleópatra, René Goscinny e Albert Uderzo trazem nossos heróis para as imediações de sua própria “pacata” aldeia. No entanto, o escopo mais modesto de O Combate dos Chefes não retira da história sua graça e relevância dentro do cânone de Asterix. Para dizer a verdade, pessoalmente, esse sempre foi e continua sendo – confirmei agora, ao reler pela enésima vez – minha aventura favorita desses fantásticos personagens.

Panoramix é, novamente, assim como em Asterix e os Godos, o centro das atenções. Como druida da aldeia, responsável pela poção mágica que dá força sobre-humana aos gauleses, ele precisa ser eliminado pela tropa comandada pelo Centurião Simplicius Obtus, do acampamento fortificado de Babaorum, que dá ouvidos ao Ajudante-de-Ordens Flagelus em um plano que envolve a invocação do chamado “Combate dos Chefes”. Nesse duelo auto-explicativo, o chefe que sair vitorioso torna-se chefe também da aldeia derrotada e, como os romanos tem no enorme chefe Tomix, da aldeia galo-romana (como eles se auto-intitula) de Chiuingum, um simpatizante da “causa romana”, o plano é colocá-lo em choque direto com Abracurcix que, claro, sem a poção, não tem chance de vitória. Se Tomix sai vitorioso, a pequena aldeia gaulesa, que é o único ponto de resistência à dominação romana integral da Gália, será assimilada.

Mas, no lugar de repetir a história do sequestro de Panoramix que vimos em  Asterix e os Godos, Goscinny usa um magistral expediente: Obelix, no afã de salvar Panoramix, acerta o druida com um “menirzinho”, fazendo-o perder a memória, incluindo a fórmula da poção mágica. Pronto, de maneira transversa, os romanos conseguiram o que queriam e nós, leitores, ganhamos hilários momentos com o druida, que, de sério e sisudo, transforma-se em gozador de marca maior que não aguenta nem olhar para Obelix sem cair em risadas histéricas, chamando-o de “gordão” e outros adjetivos relacionados com sua circunferência avantajada.

É também notável a quantidade de brincadeiras linguísticas relacionadas com vegetação em geral, que faz todo sentido já que os legionários romanos se disfarçam de arbustos para capturar Panoramix e um deles em especial, o coitado do Perdasedanus, ainda é obrigado a se disfarçar de árvore para infiltrar-se na aldeia gaulesa, ganhando, no processo, uma amiga coruja (em momentos hilários) e diversas “cores” diferentes para sua pele, por se tornar o provador oficial das poções que o Panoramix desmiolado – junto com Amnesix, o druida psiquiatra que vem para tentar curá-lo, mas que Obelix faz o favor de tratá-lo com outro menir – diverte-se em fazer. E a clássica tradução nacional não perde a linha, engatando uma expressão mais bacana que a outra, fazendo a rima perfeita com o original em francês. Aliás, a tradução nacional original da grande maioria dos álbuns de Asterix merece destaque, pela dificuldade criativa em se inventar nomes que façam sentido para os personagens, além de ter que lidar com as brincadeiras constantes do afiado Goscinny.

O resultado dessa linha narrativa é um texto rico em referências, com um humor afinadíssimo e constante, com Panoramix doido, Obelix enraivecido por ser chamado de gordo, as “menirzadas” na cabeça para desespero de Asterix e, claro, a retratação de Tomix e sua reverência ao Império Romano, que lhe vale favores especiais do Centurião, além de vestimenta específica que faz mímica das togas romanas, saudações romanas e, claro, muitos dólmens e colunas romanas – e a menção a um aqueduto que ele deseja construir, apesar de sua aldeia já contar com um rio que a cruza – somente para ele assimilar-se ainda mais aos “amados invasores”. Seria Goscinny estocando os simpatizantes franceses à dominação alemã na Segunda Guerra? Creio que sim, mas tudo é feito de maneira tão jocosa que a crítica fica devidamente soterrada debaixo de uma torrente de gags.

Albert Uderzo, no estilo que o consagrou, transforma visualmente o trabalho escrito de Goscinny em pérolas da arte em quadrinhos. Sua retração da aldeia galo-romana de Chiuingum  é simplesmente a perfeita fusão entre o gigantismo de Roma e a modéstia do povoado. Togas se misturam a capacetes gauleses, colunas são salteadas entre as casas e a hilária moradia de Tomix é um suntuoso palácio romano feito com “pedaços” de uma aldeia gaulesa. Procurar as referências é uma diversão em si mesmo. E isso sem contar com a forma como o Panoramix abilolado é desenhado, não só com o abuso de cores, com também retratando-o como um hippie hilário e gozador em constante estado lisérgico.

O Combate dos Chefes é garantia de boas gargalhadas e deveria ser o volume porta de entrada para qualquer um que queira conhecer esse riquíssimo universo que reúne aulas de história com humor da mais alta qualidade. Sem dúvida alguma, um volume incomparável das aventuras de Asterix e Obelix.

Curiosidades:

– Tomix menciona que pretende dominar toda a Gália e Bretanha, construindo, depois, um “arco do triunfo”. Essa é a primeira menção a Napoleão Bonaparte, ainda que indireta, claro.

– No consultório de Amnesix, vemos um homem que acha que é um javali, um bárbaro medroso, um homem que tem pavor de que o céu caia sobre sua cabeça e outro que fica parado, com a mão dentro da camisa na altura do peito e usando um chapéu comprido que ninguém o que ele acha que é. É a segunda referência – dessa vez direta – a Napoleão Bonaparte.

– Na feira que é montada ao redor do Combate dos Chefes, vemos diversas referências interessantes: (1) uma “Montanha Eslava” no lugar de uma “Montanha Russa”, já que a Rússia não existia naquela época; (2) o desenho de Marsupilami, famoso personagem de quadrinhos belga; (3) álbuns de Asterix sendo vendidos. No original francês, a livraria que vende os álbuns de Asterix é W.H. Smix, em clara referência à cadeia de lojas W.H. Smith.

– No original, vemos uma escola de “línguas vivas” do Professor Berlix, que é claramente uma referência ao professor Berlitz, criador dos cursos de línguas Berlitz.

Alea jacta est. Essa famosa frase em latim é mencionada duas vezes e significa, claro, “a sorte está lançada.” Diz a lenda que essa foi a frase que Júlio César disse logo antes de fazer sua lendária travessia do Rio Rubicão, entre a Gália e o norte da Itália, em seu caminho de volta à Roma, para tornar-se ditador.

Quod erat demonstrandum. Dita por Flagelus ao Centurião Obtus quando ele ainda tem esperança de que Panoramix tenha sido incapacitado, ela significa “como se queira demonstrar”, conhecida na matemática ao final de demonstrações, com a sigla Q.E.D. no original ou C.Q.D. em português.

– Dulce et decorum est pro patria. Perdasedanus, recusando-se a sair de um caldeirão e sendo colocado no fogo pelo Centurião Obtus diz essa frase, que significa “é doce e correto morre pelo país”. Essa frase é de Horácio, poeta romano, em suas Odes. 

Locais:

– Aldeia gaulesa de Asterix e Obelix.

– Aldeia galo-romana de Chiuingum, cujo chefe é Tomix.

– Acampamento fortificado romano de Babaorum, cujo centurião é Simplicius Obtus.

Personagens (além de Asterix e Obelix):

– Abracurcix, chefe da aldeia de Asterix e Obelix.

– Panoramix, druida da aldeia.

– Chatotorix, insuportável bardo da aldeia.

– Amnesix, druida “psiquiatra” que tenta ajudar Panoramix.

– Hermentrudes, secretária e recepcionista de Amnesix.

– Tomix, chefe da aldeia de Chiuingum.

– Simplicius Obtus, centurião romano e comandante de Babaorum.

– Flagelus, Ajudante-de-Ordens de Obtus.

– Perdasedanus, legionário romano que é comandado a espionar a aldeia gaulesa.

  • Crítica originalmente publicada em 10 de dezembro de 2014. Revisada e atualizada para republicação hoje, 06/05/2020, como parte da versão definitiva do Especial Asterix do Plano Crítico.

O Combate dos Chefes (Le Combat des Chefs, França/Bélgica – 1966)
Roteiro: René Goscinny
Arte: Albert Uderzo
Editora original: Pilote, Dargaud (serializada em 1964 e lançada em formato encadernado em 1966)
Editoras no Brasil: Record (em formato encadernado)
Páginas: 50

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