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Crítica | O Comprador de Fazendas e Outros Contos de Urupês, de Monteiro Lobato

por Luiz Santiago
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Os contos aqui analisados foram originalmente escritos entre 1914 e 1917, três deles previamente publicados antes da coletânea Urupês, organizada pelo autor e lançada em 1918. As publicações prévias dessas obras aconteceram n’O Estado de S. Paulo e na Revista do Brasil.

Urupês saiu com 14 textos, organizados na ordem a seguir, com sua data original de escrita: Os Faroleiros (1917), O Engraçado Arrependido (1916), A Colcha de Retalhos (1915), A Vingança da Peroba (não se sabe a data de escrita), Um Suplício Moderno (1916), Meu Conto de Maupassant (1915), Pollice Verso (1916), Bucólica (1915), O Mata-Pau (1915), Bocatorta (1915), O Comprador de Fazendas (1917), O Estigma (1915), Praga Velha (1914) e Urupês (1914).

O título do livro, Urupês, faz referência ao fungo orelha-de-pau (Pycnoporus Sanguineus), popularmente chamado de urupê. Na capa original do livro, José Wasth Rodrigues desenhou uma figueira-vermelha ou mata-pau (Ficus Clusiifolia) agarrada a outra árvore, fazendo referência a um conto do livro. Tanto o fungo quanto a epífita são representações do caboclo que Monteiro Lobato incendeia nos seus textos críticos a respeito do “caipirão raiz“.

plano crítico urupês, monteiro lobato 1918

Algumas capas de Urupês ao longo dos anos. No canto superior à direita, a capa original.

Dos 14 textos de Urupês (que inicialmente se chamaria Doze Mortes Trágicas) 12 são contos e 2 são crônicas extremamente ácidas que olham para o caboclo (o homem muito simples do campo) de forma crítica e até mesmo hostil. São eles Velha Praga (originalmente publicado em O Estado de S. Paulo, 12 de novembro de 1914) e Urupês (originalmente publicado em O Estado de S. Paulo, 23 de dezembro de 1914). No primeiro texto, o autor fala das queimadas provocadas pelo caboclo para “melhorar o solo” e que acaba gerando desastres difíceis de se controlar, além de arrasar o solo a longo prazo. Já no segundo texto — que dá título ao livro e é um dos mais famosos de Lobato –, temos uma crítica absurdamente feroz a esse tipo de indivíduo, com o autor fazendo um histórico a partir do louvor indianista de José de Alencar e por aí chegando ao “índio da vez“, o “caboclo coitado” que o autor vê como fraco, indolente, preguiçoso, passivo, estúpido. Uma abordagem sociologicamente problemática, mas coberta de razão em diversos pontos. Ambos os textos são excelentes, uma leitura obrigatória para se conhecer uma das faces que Lobato via nesse tipo nacional e para se ter contato com as duas primeiras aparições do personagem Jeca Tatu na literatura brasileira, primeiro citado rapidamente ao fim de Velha Praga e depois como “personagem” principal do mega insulto cultural/social que é Urupês.

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Bocatorta

A quarto de légua do arraial do Atoleiro começam as terras da fazenda de igual nome, pertencente ao major Zé Lucas“. Assim começa este tenebroso relato de Monteiro Lobato que é uma história capaz de abarcar diversas dimensões de leitura, de aproximações simbólicas a tratamento social (e ideológico também, considerando o pensamento do autor), mas o foco principal aqui é a realidade nua e crua vestida de uma aura tão macabra que, aos olhos que “alguém da cidade”, parece mesmo superstição caipira, coisa que ninguém deve acreditar, eventos que podem ser explicados por uma racional observação do mesmo fato.

Bocatorta é o nome do personagem principal, mas ele só aparece mesmo do meio para o final do conto. Todavia, a narrativa inteira conta com a presença do infeliz, já que o futuro genro do major cria um enorme interesse pela figura e quer detalhes sobre a tal mitológica feiura do negro que vive numa cabana no meio do mato, com seu cachorro Merimbico. São dois estágios de construção da atmosfera de medo: o primeiro, com uma ótima descrição geográfica de todo o arraial do Atoleiro (e do próprio atoleiro em si, profundo e responsável por engolir sem cerimônia homens e animais); e o segundo, com a criação de uma expectativa, certa ameaça e grande desconfiança em torno do horrendo Bocatorta, que a pedido de Eduardo, noivo de Cristina, todos se dispõem a “visitar”. Uma visita de constatação da feiura: o preto deformado como espetáculo, como sustentação de um “relato popular” que se mostra bem verdadeiro.

__ Bocatorta é a maior curiosidade da fazenda — respondeu o major. — Filho duma escrava de meu pai, nasceu, o mísero, disforme e horripilante como não há memória de outro. Um monstro, de tão feio. Há anos que vive sozinho, escondido no mato, donde raro sai e sempre de noite. O povo diz dele horrores — que come crianças, que é bruxo, que tem parte com o demo. Todas as desgraças acontecidas no arraial correm-lhe por conta. Para mim, é um pobre-diabo cujo crime único é ser feio demais. Como perdeu a medida, está a pagar o crime que não cometeu…

O horror ganha total terreno no final do conto, com um relato de necrofilia que deixa o leitor enojado, enraivecido e espantado que esteja lendo isso de Monteiro Lobato (fora as obras infantojuvenis do autor, eu não tive contato com absolutamente nada do que ele escreveu até ler os contos desse compilado, então para mim, pelo menos, foi um espanto). A cena de fuga e toda a conclusão da história, numa linha moral, mas não facilitadora ou boba, nos deixa em grande antecipação pelo destino de cada um — e nada parece muito promissor. É uma história curta, mas com um interessantíssimo trabalho em relação ao “monstro humano” da vez, que, como eu disse antes, pode gerar diferentes leituras, mas oficialmente finca os pés no terror e na morte trágica, pontos muitíssimo bem realizados, mesmo que esbarrem num cambaleante corte temporal no finalzinho. Absolutamente medonho e imperdível!

Bocatorta (Brasil, 1915)
Autor: Monteiro Lobato
Publicação original: Revista do Brasil #8, agosto de 1916
Coletânea: Urupês, 1918
Capa original: José Wasth Rodrigues
Editoras da coletânea completa: Monteiro Lobato & Cia. (1918), Companhia Editora Nacional (1925), Livraria Martins Editora (1944), Editora Brasiliense (1944) e Editora Globo (2007).
10 páginas

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Pollice Verso

Por motivos de olhar a hipocrisia da sociedade brasileira (em um relato de “médico do campo“) é que Pollice Verso me lembrou um pouquinho de Lima Barreto. Na história conhecemos Inácio, apanhado, quando criança, dissecando um pássaro. O pai, todo contente, proclama que o menino tinha encontrado sua vocação: seria médico. E deste momento em diante vemos uma construção paterna diante da selvageria e maldade infantis ganhar asas e moldar para sempre a vida de um rebento. Infelizmente, não para melhor.

Mesmo que o texto não critique de fato essa questão da força da família na escolha profissional dos filhos (ainda mais no início do século XX, quado haviam poucas “profissões almejáveis” a se seguir), é impossível para o leitor não levar isso em consideração, e mais ainda, pensar em como certas “coisas medonhas de criança” se tornam, por errônea interpretação, uma meta a ser cumprida pelo tal filhote, quando crescer. O destino daí para frente é duvidoso, e não seria para menos: maltratar animais diz mais sobre a psicologia da criança do que um indicativo de que ali vivia um adormecido médico, não é mesmo? Mas para Inácio, essa transformação consegue um excelente casamento, a longo prazo, com a sociedade brasileira, especialmente entre os seus pares e os “notáveis” (foi aí que me veio à memória uma mescla rápida de O Homem Que Sabia Javanês e Harakashy e as Escolas de Java).

Já homem e formado, o Doutor Inácio volta para Itaoca (olha a cidade aí de novo!) e ganha como prêmio a desconfiança dos locais e dos colegas curandeiros. Uma parte dessa relação, porém, muda na reta final do conto, com mais uma tragédia e mais uma morte que deixa o leitor sorrindo pela maneira inteligente e gostosa com que o autor faz acontecer essa violência e crime, mas ao mesmo tempo triste, por saber que não é algo que temos apenas na ficção.

“Pollice Verso” (Brasil, 1916)
Autor: Monteiro Lobato
Publicação original: Revista do Brasil#18, junho de 1917
Coletânea: Urupês, 1918
Capa original: José Wasth Rodrigues
Editoras da coletânea completa: Monteiro Lobato & Cia. (1918), Companhia Editora Nacional (1925), Livraria Martins Editora (1944), Editora Brasiliense (1944) e Editora Globo (2007).
10 páginas

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O Mata-pau

Um conto com um símbolo muito interessante e que justifica a escolha do artista José Wasth Rodrigues para representar, na capa original de Urupês, um Mata-pau agarrado à outra árvore. O Mata-pau a gente já conhece: é uma planta que surge discretamente numa árvore, cresce rapidamente e, com o tempo, começa a sugar-lhe toda a seiva, matando a árvore original. Partindo dessa imagem é que Lobato transforma uma passagem deslumbrada de um viajante qualquer pela mata em uma história familiar trágica, triste e violenta, apontando filosoficamente para “um outro tipo de Mata-pau“. Mais uma vez, um conto sobre o “monstro humano”.

O guia que acompanha o viajante conta-lhe a saga de Elesbão e Rosa, um casal que não consegue ter filhos e que certa noite recolhe um enjeitado próximo ao monjolo da propriedade. Surge então Manuel Aparecido, que acaba fazendo as vezes de “Mata-pau humano“, com índole questionável, aversão ao trabalho e um atar de laços inesperados com seu Édipo, tendo um caso com a própria mãe de criação. As relações que o autor trabalha no texto nos enraivecem e nos faz esperar por um tipo de tragédia que logo é “descartada” e substituída por outra ainda pior, afetando a todos… bem… exceto ao parasita, como é de praxe, algo que nos deixa ainda mais irados.

O Mata-pau (Brasil, 1915)
Autor: Monteiro Lobato
Publicação original: Revista do Brasil, #24, dezembro de 1917
Coletânea: Urupês, 1918
Capa original: José Wasth Rodrigues
Editoras da coletânea completa: Monteiro Lobato & Cia. (1918), Companhia Editora Nacional (1925), Livraria Martins Editora (1944), Editora Brasiliense (1944) e Editora Globo (2007).
7 páginas

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O Estigma

Uma história de amor com um tempero de crueldade e costurada com uma crítica às máscaras sociais, especialmente àquelas ligadas ao casamento. O narrador está chegando em Itaoca e, após uma breve descrição do local (mais para delinear o fato de que o narrador é um estranho naquele ambiente do que para louvar a natureza abundante), consegue chegar à fazenda que estava procurando. Os encontros, cumprimentos e surpresas são muitos e interessantes nesse início, mas o autor está constantemente mudando de ritmo, talvez para acostumar o leitor com o salto de muitos anos que temos no final.

Existem fatores aqui que misturam os ingredientes de um péssimo relacionamento (como o casamento por interesse) e questões humanas que agravam ainda mais esse problema, principalmente quando afetam indivíduos fora do complicado cônjuge. Enquanto está no campo — o seja, em todo início e desenvolvimento da história — o texto mantém vivo o nosso interesse. Já a parte final apela para um misto de sentimentos de cunho fortemente moral + nuances de fantasia, o que quebra bastante aquilo que o conto tinha de melhor. Se esse elemento que sugere o sobrenatural fosse algo desenvolvido ao longo da trama (como em Bocatorta, por exemplo), a proposta casaria bem, mas não é o caso. De toda forma, a despeito de seu final, a construção do medo e o anúncio da tragédia amorosa são coisas que realmente nos chamam a atenção aqui.

O Estigma (Brasil, 1915)
Autor: Monteiro Lobato
Publicação original: Revista do Brasil #28, abril de 1918
Coletânea: Urupês, 1918
Capa original: José Wasth Rodrigues
Editoras da coletânea completa: Monteiro Lobato & Cia. (1918), Companhia Editora Nacional (1925), Livraria Martins Editora (1944), Editora Brasiliense (1944) e Editora Globo (2007).
9 páginas

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Bucólica

Preciso. Irônico. Cruel. Bucólica tem uma estrutura que nos engana muito no começo. O autor nos faz dar um belíssimo passeio por uma linda manhã de Sol, após uma chuva torrencial no dia anterior. Com muita graça, descreve toda a vida que observa aqueles que andam pela manhã no mato, especialmente após muita chuva. Orvalho nas folhas, um pouco de névoa a se dissipar, pássaros, anfíbios, insetos. É um lugar de “lassidão infinita” onde supostamente as coisas más a que tanto estamos acostumados na cidade, não deveria tocar. No entanto, há humanos também na zona rural. E onde há humanos, sempre há a possibilidade de algo terrível acontecer.

É aí que entra a ironia do conto. A bela paisagem (quase uma narração romântica!) se vê cortada por um narrador que vai de um ponto a outro. Ele fala de alguém doente com uma pessoa. Depois se indigna com queimadas de terra. E então encontra-se com a negra Libória, que trabalhava para o casal Veva e Pedro Suão. Eles tinham uma filha deficiente, Anica, que só era mesmo cuidada pela criada Libória. A grande chuva do dia anterior, que tão bela paisagem nos proporcionou no início do conto, traz agora o seu outro lado: deteve na vila a criada com o remédio da menina. Nessa noite, ardendo de febre, a deficiente teve sede, e várias vezes pediu água para a mãe, que só lhe respondia uma coisa “cala a boca, peste“. Morreu de sede, a menina, praticamente aos pés de um copo d’água. Confesso que terminei o conto de olhos marejados.

Bucólica (Brasil, 1915)
Autor: Monteiro Lobato
Coletânea: Urupês, 1918
Capa original: José Wasth Rodrigues
Editoras da coletânea completa: Monteiro Lobato & Cia. (1918), Companhia Editora Nacional (1925), Livraria Martins Editora (1944), Editora Brasiliense (1944) e Editora Globo (2007).
6 páginas

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O Comprador de Fazendas

__ Comedor de bolinhos! Papa-manteiga! Toma! Em outra não hás de cair, ladrão de ovo e cará!…

Junto de Urupês, O Comprador de Fazendas está entre as produções mais famosas de Monteiro Lobato (fora suas obras infantojuvenis), seguindo aquela linha de olhar crítico, admoestador e birrento que ele tinha para com o homem do campo. O conto, no entanto, é uma deliciosa comédia com toques não tão divertidos de realismo, pois a inspiração em diversos casos reais mostra que a atitude do falso comprador de fazendas já deixou muitos fazendeiros (também malandros) de cabelo em pé e em situação financeira ainda pior.

O início da narrativa é hilária, mas dentro de um aspecto bem peculiar, porque o autor está basicamente dando descrições geográficas, agrícolas, pecuárias e do espaço habitado da azarada Fazenda do Espigão, que já arruinara três donos. O leitor ri do terrível lugar e ao mesmo tempo vai criando um sentimento de empatia e dó para com o dono atual dessas terras, Davi Moreira de Souza, que junto de sua mulher Isaura e os filhos Zico e Zilda, vê-se em desespero com uma fazendo que só dá gastos.

A narrativa de aura regionalista e igualmente realista é nutrida pela comicidade onde o sofrimento dos indivíduos reside em algo externo, então o conhecido “prazer no sofrimento alheio” que a gente sente aqui é reforçado quase que inconscientemente, e fica ainda maior quando Pedro Trancoso (vejam o nome do infeliz!) aparece na jogada: capitalista bem falado, bonito, homem de respeito que está interessando na Fazenda do Espigão. Um bom negócio à vista, imagina a família. Mas o leitor já nota (e Lobato não faz nenhuma questão de esconder que se trata de um golpe, pela forma como desenvolve a aventura) que mais sofrimento virá pela frente, e o que já era divertido e delicioso de se ler, fica ainda melhor.

A enganação de Trancoso é muito bem feita e ela faz com que a família tome atitudes que o autor não perdoa. O comportamento criminoso de um encontra-se com o comportamento criminoso de outro: o jovem quer dar um golpe e o proprietário do local cobra imensamente mais do que a Espigão valia — vejam que um dos compradores de outrora disse que, de graça, a fazenda ainda estava cara! A isso soma-se a hipocrisia que desponta como uma redoma em volta da família, todos cultivando sonhos e tratando o capitalista da melhor forma possível porque estavam, eles mesmos, procurando aplicar um bom golpe — algo que, com sorte, poderia ainda ser melhor: se Trancoso se apaixonasse por Zilda, que imaginava viver ali todos os amores que lia nos romances do espanhol Enrique Pérez Escrich.

A quebra narrativa que o conto traz no final coroa a obra com um diálogo direto com o público, mudando um puco a nossa perspectiva do conto e transferindo-a para uma peça à la comédia de costumes (não muito diferente dos “causos” que Lobato imaginava em sua visão teórica sobre o gênero), alfinetando os que chegam cedo e saem tarde do espetáculo e então entregando-nos uma conclusão que não foge ao clima geral, abordado a partir de outra atmosfera humorística. Um verdadeiro trabalho de mestre.

O Comprador de Fazendas (Brasil, 1917)
Autor: Monteiro Lobato
Publicação original: Revista do Brasil #27, março de 1918
Coletânea: Urupês, 1918
Capa original: José Wasth Rodrigues
Editoras da coletânea completa: Monteiro Lobato & Cia. (1918), Companhia Editora Nacional (1925), Livraria Martins Editora (1944), Editora Brasiliense (1944) e Editora Globo (2007).
11 páginas

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