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Crítica | O Conto de Zatoichi

por Luiz Santiago
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  • Confira as críticas para os outros filmes da saga aqui.

O Período Edo do Japão, bastante conhecido pelo governo do Xogunato Tokugawa, durou de março de 1603 a maio de 1868. É nesta fase da História que se passam a maioria de filmes como Os Sete Samurais (1954), Intendente Sansho (1954), O Samurai Dominante 1: Musashi Miyamoto (1954), Harakiri (1962) e tantos outros clássicos do cinema nipônico. Também surge neste Período uma das organizações mais conhecidas do Japão, a Yakuza, inicialmente dividida entre comerciantes sacanas (os tekiya) e os apostadores e gerenciadores de jogos de azar (os bakuto), de onde surgiram as principais rixas, alinhamento a clãs poderosos, gangues e famílias que, com o passar das décadas, se tornaram bastante relevantes para o país, a ponto de hoje não serem mais uma organização totalmente ilegal.

Bastante interessado em explorar as mudanças sociais japonesas do século XIX (toda a saga de Zatoichi no cinema se passa entre as décadas de 1830 e 1840 — para alguns, até 1850) e o embate entre diversas eras hierárquicas em transformação, o autor Kan Shimozawa criou Zatoichi, um personagem cego, com grandioso senso de percepção da realidade (sentidos apurados), massagista, acupunturista, expert no jogo de dados e uma lenda no uso da espada. Falecido em 1968, Shimozawa teve a oportunidade de ver a importância que seu personagem ganhou no cinema japonês, tornando-se parte de uma das maiores cinesséries do país, cujo pontapé inicial se deu em 1962 pelas mãos do cineasta Kenji Misumi, diretor notável por suas excelentes contribuições para a saga Lobo Solitário, com os filmes A Espada da Vingança, O Andarilho do Rio Sanzu e Contra os Ventos da Morte, todos de 1972.

Neste primeiro filme de uma série de 26, temos a apresentação virtual do herói, com breve exploração de suas habilidades, mas nenhuma informação sobre o seu passado. Desde o início, Zatoichi causa grande impressão sobre o espectador e sobre os servos de um Senhor da Yakuza por quem foi chamado com “freelancer” para cumprir um objetivo obscuro, que se revela bastante cruel no final do filme. À primeira vista, Zatoichi é só um humilde massagista e jogador que carrega uma reputação que demora a se revelar, muito por conta da recusa do próprio personagem, trazendo-nos ecos clássico western O Matador (1950).

A grande influência para a criação de um filme com este personagem literário, e mesmo o formato de retratá-lo no cinema, veio do longa A Ameaça Cega (Kazuo Mori, 1960), longa que conta a história de um massagista cego que trabalhava na corte e que usava de sua posição, ambição e habilidades para matar e conseguir o que queria. O destaque  aqui não é exatamente para alguns pontos similares do enredo, mas para o roteirista de Shiranui Kengyô, o mesmo de O Conto de Zatoichi; e para o ator que interpretava Suginoichi, o massagista cego com um “lado negro”, Shintarô Katsu, que deu vida a Zatoichi em praticamente todos os filmes da série.

Por mais que o protagonista aqui queira estar longe de problemas, tudo parece girar em torno dele e cobrar sua participação. Ele ouve, cheira, toca e está presente em situações que desencadearão tragédias ou destinos dolorosos ao final da fita, com destaque para sua breve e fraterna relação com o mestre samurai Hiraji (Hajime Mitamura). Um ponto relativamente perdido nesse desenvolvimento é o pequeno flerte com Otane (Masayo Banri), que só ganha relevância de verdade no final, após um episódio de violência contra a jovem. A partir daí, há pouco tempo para que esse flerte se expanda, não no sentido real ou romântico, mas de forma que não parecesse algo que brotou na história e que rapidamente ganhou mais importância do que deveria. Os planos com Zatoichi e Otane em lugares separados da região, ele indo embora e ela olhando para o rio onde o irmão se afogara de maneira um tanto exagerada é de uma enorme e triste beleza. Curioso notar que ela e Zatoichi compartilham poucas cenas juntos, mas algumas das mais belas do filme, com destaque para o passeio na noite enluarada.

Kenji Misumi tinha um senso muito preciso de movimentação de câmera e fez poucos movimentos com ela ao longo do filme. Quando os fazia, era sempre para aproveitar aparições de personagens em lugares próximos do mesmo cenário, normalmente em algum momento-gatilho da narrativa. Na maioria das vezes, porém, os planos se estendem por um determinado tempo e existe, no máximo, um zoom antes do corte e de passarmos para outra cena. Há poucos momentos em que essas passagens parecem desconexas. Como a intenção é mostrar as reações do protagonista em um ambiente cada vez mais perigoso, passamos da casa de um Senhor da Yakuza para outro, cada um empregando um “grande campeão” que, por ironia, se tornaram amigos. Quando nos aproximamos da batalha final, vemos a câmera movimentar-se bem mais, fazer com frequência aquilo que o diretor evitou a maior parte do tempo.

Em bons filmes de samurai há sempre uma boa relação entre cenas nos castelos ou casas e cenas em ambientes naturais. Esses espaços dão a oportunidade do fotógrafo brilhar ao lado do diretor. O momento em que isso ganha o seu melhor patamar em O Conto de Zatoichi é quando ele deixa seu amigo Hiraji conversando com o Senhor e segue, no caminho da floresta. Dois homens são enviados para matar Zatoichi, a fim de impedi-lo de falar o que ouviu. A sequência da breve luta na floresta é filmada com grande elegância e uma perfeita iluminação, uma das melhores de toda a fita. Ainda podemos ver muito do trabalho de Chikashi Makiura nas tomadas noturnas, tanto em externas quanto internas. E claro, vale destacar a beleza da grande batalha final, que parece demorar uma eternidade para acontecer e acaba rápido demais, mas com um tratamento visual primoroso e montagem na medida, para nos passar, ao mesmo tempo, a violência e o lirismo do que acontece naquela ponte.

Shintarô Katsu realiza um trabalho certeiro no papel principal. Suas engolidas em seco, o momento certo de abrir os olhos, a controlada expressão de fúria, a entonação sempre mediana da voz, todo o estereótipo de uma lenda que quer passar despercebida é encarnado por ele, assim como uma série de arquétipos para este tipo de personagem que não necessariamente nos são mostrados a partir do ator mas do que se diz ou do que interpretamos sobre Zatoichi.

A longa jornada de um grande personagem começava no cinema. O Conto de Zatoichi foi um baita sucesso de público e criaria escola ao retratar um herói relativamente despido dos maneirismos de personagens do seu tipo. O primeiro conto foi só um aperitivo. Ainda havia muito para percorrer e o próximo estágio viria ainda em 1962, seis meses depois que este primeiro filme estreou nos cinemas japoneses. Um ganho certeiro para o estúdio e o início de algo que entraria para a História.

O Conto de Zatoichi / Zatoichi #1 (Zatôichi monogatari, Japão – 1962)
Direção: Kenji Misumi
Roteiro: Minoru Inuzuka (baseado em conto de Kan Shimozawa)
Elenco: Shintarô Katsu, Masayo Banri, Ryûzô Shimada, Hajime Mitamura, Shigeru Amachi, Michirô Minami, Eijirô Yanagi, Toshio Chiba, Manabu Morita, Yoshindo Yamaji, Yôichi Funaki,  Eigorô Onoe
Duração: 96 min.

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