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Crítica | O Criado (1963)

Sem maiores explicações, Losey afunda público e personagens num universo caótico e perplexo.

por César Barzine
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Ao término de O Criado, o público não sabe muito bem o que acabou de ver, qual é o sentido geral da obra ou o significado de uma série de desdobramentos que o roteiro toma. Há um forte desnorteamento na posição do espectador, que se sente desconcertado por uma fusão de arbitrariedades que rondam na psique dos personagens integrantes deste perplexo filme. Algumas pessoas já haviam dito que todo o trabalho de Joseph Losey é sobre a natureza humana, em especial as maldades que compõem este ser. Não há por que dizer que a maldade seja o melhor rótulo para classificar os personagens desta história, mas existe, sem dúvidas, um tipo de perversão com que cada personagem exerce seu individualismo numa rede de intrigas recheada de desejos, segredos, angústias e mentes esperando pelo melhor momento para atacar. 

E é neste jogo quase que macabro, no qual simplesmente não sabemos que diabos cada pessoa deseja, mas nos sentimos fascinados com cada passo que elas dão, que a condução estética de Joseph Losey eleva O Criado a um patamar de sofisticação e até de sensualidade que consegue entregar toda uma harmonia ao caos apresentado pelo roteiro. O ponto central desse universo interpessoal é a relação servil entre Barrett e Tony, em que o primeiro passa a ser criado do segundo; porém, como podemos notar desde o início, não se trata, aqui, de uma ligação trabalhista comum, assim logo nos vem à mente o fato de que essa relação tende a se aprofundar, e que todo o espaço que Barrett conquista naquela casa está prestes a se transformar em algo muito maior.

O filme se passa na Inglaterra dos anos 1960 numa residência de classe média-alta de um homem refinado; Barrett, como demonstra já de início, possui um refinamento semelhante. Todo esse contexto remete a nobreza, o design da casa é permeado de peças da alta cultura, os gêneros musicais ouvidos são jazz e música clássica e os ambientes externos são dominados pela neve; ou seja, há um senso de aristocracia impresso aqui, levando a uma vaga noção de rigor que está prestes a ser demolida pela penetração de um intruso naquele meio. A aura do filme acaba sendo, então, de uma extrema sofisticação exposta em companhia da junção de firmeza e fragilidade, da qual é salientada pelos magníficos planos conjuntos apresentados, em que dois personagens, cada um em um nível de profundidade diferente, compartilham o mesmo enquadramento e sugerem um duelo entre si.

Outra questão de mise-en-scène que chama atenção são os deslumbrantes planos que enquadram o reflexo de algum personagem em espelhos. Essas imagens, de uma beleza enorme, dão uma aura fantasmagórica ao filme, colaborando também em relação à densidade e tensão psicológica entre os personagens. No entanto, o momento do longa que melhor expõe esses dois fatores é aquele em que Tony, ao chegar em casa de surpresa, descobre o segredo amoroso de Barrett com a amante que ele possui. O clímax dessa situação está na reação de Barrett, que permanece paralisado diante do patrão. Sua postura não se dá em decorrência de algum tipo de constrangimento ou sentimento de inferioridade, e sim pelo oposto: ele se mantém de cabeça firme, fincando seu orgulho e revelando para Tony sua falta de submissão. Seu corpo nem sequer chega a aparecer, mostrando apenas sua sombra num longo plano pra lá de expressionista. A forma com que o vulto dele se apresenta através do extracampo chega a ser assombrosa, fazendo com que sua simples permanência ali (ou a falta dela) — e da câmera também, que não acrescenta nenhum contraplano — provoque uma sensação de êxtase no espectador.

Vera, a namorada de Barrett e amante de Tony, é outra personagem fascinante. Sua presença surge de modo quase abrupto, dando destaque para planos que enfatizam a sensualidade da jovem — em especial, suas pernas —, característica que será necessária para conquistar Tony. No entanto, o fascínio em torno dela se dá justamente por contrariar essa primeira impressão alcançada, da qual esse seu mesmo jeito vem acompanhado de uma postura jocosa, em que ela demonstra ser uma garota desengonçada e tola. E é neste ponto que surge uma grande surpresa: Vera se manifesta como uma verdadeira femme fatale, sendo cruel não só com Tony — da qual isso já era evidente —, mas também com o próprio Barrett, distorcendo completamente os rumos da trama. 

Esse tipo de mudança, em que a personalidade de alguém ou a direção da história se altera bruscamente é uma constante no decorrer de O Criado. O protagonista do filme, por exemplo, dono de um formalismo extremo, se transfigura numa criatura anárquica e tão jocosa quanto Vera em certos momentos. Sua relação com Tony, no último terço da obra, alcança um estágio completamente diferente do restante, em que ele revela seu lado emocional completamente abalado e indica certa dependência afetiva em relação ao seu patrão — o que leva, até mesmo, à sugestão de um teor homossexual. Após isso, toda a obra fica de vez completamente sem sentido, dando a sensação de ser tudo uma grande brincadeira entre os personagens ou do roteirista, um mero exercício de ações aleatórias que buscam fechar o arco de uma narrativa totalmente fora dos eixos.

Segundo Joseph Losey, foi preciso subtrair uns 20 minutos da produção para deixá-la “mais comercial”. Curiosa essa afirmação pois, primeiro, o filme continua extremamente anticomercial e, segundo, a sensação causada quanto ao ritmo da obra é de cansaço em alguns instantes, levando justamente à observação de que seria necessário um corte adicional de também 20 minutos. Em meio a tantas passagens sem sentido, aquelas que não empolgam deixam o espectador num estado enfadonho, principalmente nesta fase final do filme. O que não chega a tirar o brilho dessa excitante obra que é como um labirinto sem destino ou saída, um palco de tensões onde os conflitos são um fim em si mesmo, e o lado obscuro de alguns aspectos vem unido com uma malícia embalada pelo som de saxofone reinante e a ambiguidade do universo das boas maneiras.

O Criado (The Servant, Inglaterra — 1963)
Direção: Joseph Losey
Roteiro: Harold Pinter, Robin Maugham (romance)
Elenco: Dirk Bogarde, James Fox, Sarah Miles, Wendy Craig, Patrick Magee, Catherine Lacey, Richard Vernon, Ann Firbank, Doris Nolan, Jill Melford, Alun Owen, Harold Pinter
Duração: 112 minutos

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