Home LiteraturaConto Crítica | O Crime do Professor de Matemática, de Clarice Lispector

Crítica | O Crime do Professor de Matemática, de Clarice Lispector

Refletindo a solidão do homem moderno.

por Leonardo Campos
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Professores de matemática geralmente são descritos pelo viés dos estereótipos. É um padrão facilitador que, em muitos casos, nos ajuda nas identificações ligeiras do cotidiano. Orgulhos, boçais, loucos ou gênios. São definições de potencial simbólico forte no âmbito das representações sociais que englobam também a sua suposta postura antissocial, inteligência superior, genialidade, loucura, habilidade para lidar com números como se o cálculo e a resolução de equações fosse um ritual de prazer semelhante ao ato de comer um prato delicioso ou desfrutar de intensas trocas de carícias numa relação amorosa. Descritos como bom de lógica e de memória, os professores de matemática também são classificados como arrogantes, sisudos, objetivos, prepotentes, soberbos, donos da verdade, excêntricos, lógicos e frios. As duas últimas observações deste painel de estereótipos estão cabalmente retratadas na concepção do personagem que intitula o conto O Crime do Professor de Matemática, de Clarice Lispector, a deflagração de uma pessoa que se distancia de certas emoções em sua lógica cartesiana diante da vida, situado num cenário habilmente construído por uma atmosfera fria e opaca.

Parte integrante da coletânea Laços de Família, de 1960, temos destaque por aqui para um personagem masculino, algo incomum na tradição narrativa da escritora que dispensa grandes apresentações. Basicamente, sabemos ser a autora de clássicos como A Hora da Estrela, Perto do Coração Selvagem, dentre outras maravilhas da literatura brasileira do século XX. Conhecida pelo fluxo de consciência, momentos epifânicos de figuras ficcionais em momentos simplórios do cotidiano e estabelecimento de metáforas insólitas diante da ruptura de enredos que caminham pelo factual, Clarice Lispector entrega, no conto em questão, uma história com tons memorialísticos complexos, profundos, numa radiografia magnífica da solidão do homem da modernidade, envolto em tópicos temáticos como culpa, pecado, religiosidade e juízo final. É a trajetória de um homem ciente de suas ações que tem as suas convicções abaladas, mas opta pela racionalidade matemática de suas escolhas numa situação bastante peculiar.

Simbolicamente envolto na ideia de frieza na qual se encontra constantemente associado, o professor de matemática do conto caminha em direção ao trabalho e ao passar por uma das vias costumeiras de sua jornada, se depara com um cão morto debaixo de uma árvore. Sensibilizado pela cena, o personagem se recorda de um antigo animal de estimação, outro cão, abandonado no passado. Tendo em vista reparar a postura que por alguns instantes, considerou desumana, decide enterrar a criatura, numa área próxima de uma igreja. Logo adiante, após refletir sobre o que fez, desenterra o animal. Ao agir de tal maneira, ele acredita não ser ele mesmo. Queria se livrar de seu “crime”, mas acaba voltando atrás, pois agindo assim, numa busca de abandono da culpa, deixaria a sua “essência” de lado. O tal cão queria carinho, afagos, um contato com o seu dono, mas no momento delineado em sua memória, estabelecido no fluxo de consciência sabiamente adotado pela escritora ao longo da narração, não era algo pra ele. Balançado por não conseguir transformar as suas escolhas em equação, ele opta pela certeza algébrica das coisas.

Em O Crime do Professor de Matemática, temos um personagem com olhar dentro de uma lógica cartesiana para as coisas, isto é, uma postura de qualquer desvio emocional, tendo instaurado, assim, a certeza, o desejo de correção diante de seus atos após ser momentaneamente abalado. Ao enterrar o cão, ele enterraria o seu passado. Será que era mesmo isso o desejado? Cada movimento de sua pá e terra, sentimentos como angústia e agonia o tomavam por completo. Daí, a decisão tomada é a mais lógica, tal qual os prováveis cálculos de suas aulas guiada por exatidões e racionalidade, num afastamento de qualquer sentimentalismo prejudicial ao seu estado psicológico, num conto que alegoria as escolhas que efetuamos diariamente, numa abordagem que também contempla a culpa que é resultado destas opções, movimentos que de alguma maneira, equaciona as nossas relações afetivas. Clarice Lispector, em sua habitual sagacidade, entrega um conto enxuto, mas profundamente reflexivo. Uma leitura de poucas páginas que se torna grandiosa assim que terminamos a missão de acompanhamento da saga deste professor de matemática dividido entre o ser ou não ser de sua rotina habitual.

O Crime do Professor de Matemática (Brasil, 1960)
Autor: Clarice Lispector
Editora original: Rocco
7 páginas

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