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Crítica | O Demônio das Onze Horas

"Meu nome é Ferdinand!".

por Luiz Santiago
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Fruto de um momento riquíssimo da carreira de Jean-Luc Godard, O Demônio das Onze Horas foi lançado no mesmo ano que Alphaville, e sucede outros grandes sucessos do diretor, que na verdade, desde o seu primeiro longa-metragem, Acossado (1960), vinha acumulando elogios e uma crescente linha de produção cinematográfica que quebrava as expectativas e convidava os espectadores a experimentarem a imagem, seus significantes e significados por um outro prisma. Apesar de muitas de suas obras brincarem com a lúdica frase “o que se precisa para fazer um filme é de uma mulher e uma arma“, o diretor nunca tornou os seus enredos escravos de uma fórmula ou mesmo de seus experimentos imagéticos. Cada exercício cinematográfico ganhava novidades e manipulações estéticas com base no que o drama precisava para se fazer entender, dentro do estilo do diretor.

Em Pierrot le Fou, um homem chamado Ferdinand (Jean-Paul Belmondo) vive uma vida que não lhe satisfaz. Leitor voraz, pai de dois filhos e não necessariamente feliz no casamento, Ferdinand vive à beira de um colapso nervoso. Todo o primeiro bloco do filme é dedicado à demonstração dos maneirismos, comportamentos e ações — muitas delas, hilárias — desse personagem, que diante de sua insatisfação com a vida, com o entorno, não hesita em desprezar, atacar verbalmente ou destruir, de alguma forma, o mundinho aburguesado de sua esposa, amigos e familiares. O surto com o bolo na recepção noturna é o primeiro exemplo disso. Nesta obra, o roteiro de Godard e Rémo Forlani, inspirado em Obsession, de Lionel White, procura demonstrar como este indivíduo entediado se tornará um mar cada vez maior de inconsequência à medida que nele deságua a paixão anárquica por Marianne, a magnética e indomável personagem de Anna Karina.

A perdição de Ferdinand começa, como era de se esperar, com uma fuga. As cores do ambiente e a câmera de Godard já indicam algo diferente, uma variação maior e uma maior estabilidade do indivíduo… pelo menos no primeiro momento, quando ele se afasta do lar onde se considerava morto, e então “volta a viver”, caindo na estrada com uma mulher que conhecera há cinco anos, mas com quem não conseguiu criar nenhum tipo de laço mais intenso. O desejo acumulado mais a repulsa à sua rotina atual faz com que Ferdinand abrace a oportunidade de mudança e vista aquilo que Marianne percebe, talvez sem querer, desde o início: a carapuça de Pierrô. E enquanto o homem representa as muitas possíveis contradições humanas (mantendo o impulso inconsequente e imaturo), a mulher guia todo o movimento do casal, em sua fuga pela França, numa história que inicialmente seria uma anárquica e cômica história de amor, mas que acabou desaguando em assassinatos, perseguições, máfias e alfinetadas sociopolíticas que arrancam genuínos e nervosos risos do público.

Como ignorar o momento em que o casal encena “uma pequena peça sobre a Guerra do Vietnã“, protagonizada pelo sobrinho do Tio Sam e pela sobrinha do Tio Ho? Além disso, indicações constantes sobre a Guerra de Independência Argelina (1954 – 1962), apontamentos sobre o anticomunismo vivo naquela sociedade e todo um escopo filosófico de busca de sentido, entendimento e felicidade para a vida se juntam em um caldeirão de eventos ao longo do filme, passando por muitos diálogos que não possuem sentido ou qualquer peso para a história (nesse sentido, penso que a obra poderia facilmente ter uns 10 ou 15 minutos a menos), mas que estão lá para reafirmar, repetidamente, a imaturidade e o espírito dionisíaco do casal protagonista. Tornou-se muito popular, inclusive, a ideia de que o longa foi filmado sem roteiro, mas algumas falas de Godard e diversas entrevistas de Anna Karina indicam que a obra teve um detalhado planejamento dramatúrgico, portanto, mesmo nos momentos em que o cineasta permitiu o improviso, este esteve encerrado em um contexto e sentido previamente combinado com os atores, sempre com base no enredo que, de fato, existia.

O final de uma jornada tão caótica só poderia ser a tragédia, que aqui se dá em dois diferentes níveis. Um, como punição impulsiva de uma traição; outro, como arrependimento tardio de um ato estúpido contra si mesmo. O Paraíso que o Pierrô Ferdinand buscava, nunca conseguiu se concretizar. Ele queria um canto afastado dos compromissos de salão, da fineza da alta sociedade e da vida regrada ao lado de mulher e filhos. Seu amor pelos livros e pela impetuosidade de Marianne encontrava a felicidade em uma casa no litoral, numa vida comum. Mas relacionamentos não são feitos apenas por um único ponto de vista. E esta foi a ingenuidade de Ferdinand, em acreditar que um furacão como Marianne iria querer passar o resto de seus dias comendo enlatados e discutindo literatura. Seu impulso desenfreado estava claro para quem quisesse ver. Ela era a beleza que anseia aproveitar o máximo da vida, mesmo sabendo do perigo mortal que isso pode trazer. É quase um flerte com o papel “destruidor” de Eva, dentro da mitologia Bíblica, mas Godard não expõe isso como condenação ao feminino. Ambos são peças no jogo de uma fase difícil de suas vidas, e como concordam em partilhar uma aventura, são igualmente responsáveis pelos risos e pelas lágrimas que encontram no caminho. Até que finalmente deixam de existir.

O Demônio das Onze Horas (Pierrot le fou) — França, Itália, 1965
Direção: Jean-Luc Godard
Roteiro: Jean-Luc Godard, Rémo Forlani (baseado na obra de Lionel White)
Elenco: Jean-Paul Belmondo, Anna Karina, Graziella Galvani, Aicha Abadir, Henri Attal, Pascal Aubier, Maurice Auzel, Raymond Devos, Roger Dutoit, Samuel Fuller, Pierre Hanin, Jimmy Karoubi, Jean-Pierre Léaud, Hans Meyer, Krista Nell, Dirk Sanders, Georges Staquet, László Szabó, Dominique Zardi
Duração: 110 min.

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