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Crítica | O Desespero de Veronika Voss

por Luiz Santiago
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Como quase todas as cinematografias nacionais europeias do pós-[segunda] guerra, a Alemanha produziu filmes de um forte caráter histórico-social, os “filmes da destruição”, ambientados na profunda crise ideológica e econômica (só para citar duas) que pairava sobre o país. Aos poucos o cinema alemão ganhou força novamente e os anos 1970 foram de excepcional renovo, com obras ousadas e críticas realizadas por nomes que se tornariam ícones de qualquer antologia de cinema: Werner Herzog, Wim Wenders, Volker Schlondorff e Rainer Werner Fassbinder.

Junto aos seus amigos do Antiteatro, Fassbinder entrou para o cinema na aurora desse período de renovação (O Vagabundo da Cidade e O Pequeno Caos são desse período), e seus futuros melodramas distanciados, com destaque para O Medo Consome a Alma, As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant e O Comerciante das Quatro Estações ou os filmes da fase histórica, com destaque para a Trilogia da Alemanha Ocidental mostram um mundo traiçoeiro, frustrado, avaro, viciado e violento, onde todos buscam alguma coisa e os mais fracos morrem ou são obrigados a desistir no meio do caminho.

Pontuado por fortes personagens femininas centrais, doses de homossexualidade (quando não é o tema principal), rigoroso uso da fotografia e planificação (com colaboradores habituais como Michael Balhaus e Xavier Schwarzenberger) e pontualíssimo e tocante uso da música (Peer Raben é o compositor que acompanha o cineasta durante toda a careira), os filmes de Fassbinder são provocantes análises ou retratos muito particulares da sociedade completamente perdida e oprimida pelo ambiente que ela mesma criou e não vê como sair dele (um triunfo da ideologia). É nesse ambiente opressivo e mortal que vivem as personagens de seu penúltimo filme, O Desespero de Veronika Voss (1982).

A personagem-título é uma decadente atriz de cinema que, viciada em morfina, fica a mercê de sua neurocirurgiã, dando-lhe tudo quanto tem em troca de doses da substância. Pequenas e pertinentes histórias paralelas se cruzam e se adaptam à trama central, especialmente a do jornalista esportivo que tenta resgatar a atriz mas é vencido pelo mundo que a cerca e domina, uma opressão social que a tudo abraça e que vemos tanto em O Casamento de Maria Braun quanto em Lola, os outros dois filmes da trilogia que se encerra aqui, da maneira mais amarga que se possa imaginar.

A primeira sequência da película é em um cinema. Uma cortina se abre e insere o espectador na sala onde se projeta um antigo filme em que Veronika atua. A atriz está na plateia e, em dado momento, cerra os olhos para não ver a cena de desespero de sua personagem viciada e acaba saindo da sala escura, perturbada com a proximidade entre a realidade diegética e a sua vida pessoal (quem imita quem?). É dessa sequência-chave que a atriz se lembrará, no epílogo do filme, quando é “apresentada” ao suicídio. À cena de abertura segue-se um flashback que nos leva para o momento em que se filmava a obra exibida. O flashback de Fassbinder é extravagante e fascinante. Luzes-estrelas brilham em diversos pontos da tela e tomam o quadro com imponente força estética, incomodando a visão do espectador e salientando ainda mais o caráter pretérito da cena. As lembranças do passado, neste filme, sempre serão acompanhadas deste tipo de iluminação agressiva, quase onírica e se distancia completamente de outro filme essencialmente metalinguístico do diretor, Precauções Diante de uma Prostituta Santa.

A planificação de O Desespero de Veronika Voss é quase uma afronta de tão bem escolhida, usada e relacionada com a tensão dramática e especialmente cênica dos quadros. A isso, soma-se uma estonteante mise-en-scène, que baila junto com os atores em um cenário abarrotado de coisas, cheio de forte luz e escuridão (um saliente caráter expressionista) e muitas vezes vistos por enquadramentos inclinados ou interceptados em primeiríssimo plano por uma parede, uma cadeira, um ombro; contra-campos com um personagem onipresente (o espectador?), que é inserido na cena ou observa a todo o tempo o cotidiano das personagens. É a influência de Douglas Sirk dando o seu penúltimo grito.

O mundo de Veronika Voss é burocrático e essa burocracia alcança todos os níveis da sociedade. Através da corrupção, facilitada pelos muitos papeis e departamentos, algumas pessoas desfrutam de grandes privilégios (em geral, financeiros), e não hesitam em cometer crimes de todas as ordens para manterem sua posição de destaque e sua fonte inesgotável de dinheiro, mesmo que a vida de outras pessoas seja destruída. Os criminosos estão sempre bem e felizes, ricos e gozando de livre trânsito na sociedade, sob a alcunha de bons profissionais e bons cidadãos.

O mundo das artes funde-se ao mundo real. Já dissemos que ao fim da fita, Veronika Voss (uma lancinante interpretação de Rosel Zech) repete um trecho do roteiro de um antigo filme que atuara. Durante toda a película, é difícil definir com certeza se ela realmente sente o que expressa, ou só atua o que sente. É como se víssemos Crepúsculo dos Deuses visitado por Scorsese, Antonioni e Bergman.

A música de Peer Raben faz simbólicos todos 100 minutos de duração do longa. Usando a seu modo o princípio da não-coincidência, o compositor “ataca” algumas cenas com uma melodia tranquila, quando a encenação caminha em sentido oposto; mas também cria a expectativa típica do suspense, com trechos graves e em tons menores e também incita a impaciência, o medo e o incômodo em diversos momentos, mesmo com a música não original ou com os tambores, cada vez mais fortes através da melodia principal, como se marcassem os batimentos do coração das personagens em cena.

Xavier Schwarzenberger arrebata o espectador através de sua fotografia tendenciosamente expressionista. Junto à direção de arte a aos figurinos, ressalta ainda mais a opressão e o desespero pretendidos por Fassbinder. Podemos citar como exemplo dessa perfeita junção o consultório da neurocirurgiã Marianne, ambiente terrivelmente branco, que destaca as figuras de Veronika, seu amante, de outros pacientes ou os policiais, todos vestidos com tons escuros em diferentes momentos do filme. A câmera fixa não exclui os movimentos de planos ou internos, o que equilibra as sequências e dinamiza o filme, dando à morbidez do estrelato, uma fluidez irônica e incômoda, ainda mais ressaltada pelo fato do filme ser em preto e branco.

A edição de Juliane Lorenz é um caleidoscópio matemático e suas transições incomuns clamam o exótico ou o irreal – aqui, ressaltamos que as transições incomodam e só são entendidas dentro de seu contexto fílmico, quando a trama já vai bem avançada. Cada sequência é um ato. O corte, aqui, tem um papel temporal e às vezes, de transição psicológico-espacial. Fassbinder estabelece o seu mundo pós-guerra quase como em pequenos documentos ou curtas ou crônicas de personagens atormentados pela perspectiva de um futuro traiçoeiro e negativo, independente de sua posição social.

Fassbinder dirige os atores dentro de “espaços de personalidade”. Cada persona em cena é um universo que vive em um universo maior, manipulando-o como um reflexo de sua alma e personalidade. O mundo pós-guerra criado pelo diretor conclama a morte pelo desespero, pela busca de um significado ou de uma paz que é impossível alcançar porque o vício ou as sequelas de um passado recente atormentam a memória e empurram o indivíduo para a morte. O Desespero de Veronika Voss esquadrinha a alma e a existência em uma Alemanha que se reconstrói, porém, sob os mortíferos pilares do vício e da indiferença.

O Desespero de Veronika Voss (Die Sehnsucht der Veronika Voss) – Alemanha Ocidental, 1982
Direção: Rainer Werner Fassbinder
Roteiro: Rainer Werner Fassbinder, Pea Fröhlich, Peter Märthesheimer
Elenco: Rosel Zech, Hilmar Thate, Cornelia Froboess, Annemarie Düringer, Doris Schade, Erik Schumann, Peter Berling, Günther Kaufmann, Sonja Neudorfer, Lilo Pempeit
Duração: 104 min.

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