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Crítica | O Despertar – Partes Um e Dois

por Ritter Fan
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estrelas 3

Scott Snyder não costuma errar. Seu trabalho autoral mais conhecido, Vampiro Americano, é sólido e consistente. Além disso, seu trabalho com o Batman é normalmente reconhecido como um clássico moderno.

O Despertar, seu segundo grande trabalho autoral, também pela Vertigo, mesmo selo de Vampiro Americano, é muito interessante, mas sofre de um problema grave: é extremamente corrido, como se estivéssemos lendo uma saga pensada para durar 50 números resumida em apenas dez. É um dos poucos momentos em que mais de algo potencialmente significaria mais qualidade, pois Snyder teria mais tempo para trabalhar sua história, já que ela cria não um, mas dois universos bem diferentes e ricos, que precisavam de mais tempo para realmente cativar o leitor e florescer.

No Brasil, O Despertar foi publicado pela Panini em dois encadernados – Parte Um e Parte Dois – enquanto que, nos EUA, a saga foi originalmente publicada em dez números. No entanto, mais do que em qualquer outro tipo de lançamento, a divisão em duas partes faz muito sentido, pois são quase duas histórias diferentes que, lógico se comunicam.

despertar-capa 1Na Parte Um, que é uma espécie de O Segredo do Abismo fundido com Alien, o 8º Passageiro, somos apresentados à bióloga marinha especializada em comunicação de cetáceos Lee Archer. Ela é recrutada pelo Department of Homeland Security dos EUA para, junto com um time de especialistas dos mais diversos, analisar uma criatura encontrada em uma base submarina secreta de exploração de petróleo. Trata-se de um ser monstruoso semelhante a uma sereia que precisa ser contido como o Hannibal Lecter e que emite, constantemente, um som de alta frequência.

Apesar de usar elementos que são clichês na ficção científica, o texto de Snyder é singular ao abordar mitos e lendas, com imagens de passado e de futuro (a história começa 200 anos no futuro, por poucas páginas, logo voltando ao dias de hoje) e ao trabalhar essas informações para criar um universo próprio, coeso e que realmente faz sentido lógico dentro da proposta. O próprio time de especialistas que começa a investigar as possíveis origens da criatura é bem pensado, cada um contribuindo com uma pequena peça de um quebra-cabeças maior e bem mais complexo do que inicialmente vemos.

A grande questão é que, mesmo nessa Parte Um, composta de The Wake #1 a 5, tudo acontece como um relâmpago. Temos pouco mais de duas páginas para nos acostumarmos com a protagonista e descobrirmos um pouco de sua vida, com um filho distante e um evento traumático em seu passado, quando ela é imediatamente arremessada à missão. E, quando os especialistas da equipe começam a ser apresentados, com teorias interessantes sobre o misterioso ser preso em um tanque, a ação frenética começa e não para mais até o final. É como assistir Alien em fast forward. Snyder para de explorar seus personagens, transformando-os em pessoas rasas com quem é difícil simpatizar ou entender suas motivações além do óbvio. É até mesmo difícil entender os planos do governo para a criatura e o que exatamente ele quer com a equipe formada. E, de repente, no clímax, a história acaba.

Mas acaba mesmo.

Entra a Parte 2. Snyder passa, então, a focar na Terra 200 anos no futuro, uma Terra bem diferente da atual, em que as calotas polares foram derretidas pela ação que é desencadeada na parte Parte Um (serei críptico aqui para não dar spoilers, ainda que seja óbvio o que acontece) e a raça humana (pelo menos nos EUA) vive atrás de extensos muros que a protege de ameaças internas. Somos apresentados a outra heroína, Leeward (e é claro que o nome não foi escolhido de maneira aleatória), que vive a vida caçando determinadas criaturas para vender suas valiosas cabeças no mercado negro para extração de uma droga. Seu melhor amigo é um golfinho cibernético e ela mora em um avião velho no topo de uma árvore, onde montou uma base para escutar sons vindos do mar. Nesse futuro, o governo – como todos os governos do futuro, lógico – é fascista e dominador, controlando grande parte da água potável do que restou dos EUA, com uma força militar formidável.

Aqui, a comparação cinematográfica mais justa seria com Mad Max 2: A Caçada Continua ou, melhor ainda, com Waterworld – O Segredo das Águas, aquela “maravilha” estrelada por Kevin Costner. Não que O Despertar seja tão ruim quanto Waterworld, pois não é o caso. Trata-se, porém, de um mundo em que o Homem passou a conviver muito mais constantemente com a água ao seu redor, tanto como fonte de riquezas, como de ameaças mortais. Novamente, Snyder cria um universo muito interessante e que aos poucos ele vai revelando como as duas partes de O Despertar se encaixam. No entanto, o problema da Parte Um é repetido na Parte Dois: o ritmo é frenético ao ponto de ser problemático. E há dois agravantes nessa segunda metade, na verdade, o primeiro deles sendo a maior riqueza de situações nessa Terra do futuro e o final desapontador para a trama épica.

despertar-capa 2O autor se esforça para apresentar um mundo diferente e vemos claramente que ele realmente construiu algo rico e interessantíssimo. Mas quase nada vemos desse mundo. Somos apresentados a alguns personagens cujas intenções, novamente, não ficam muito claras – especialmente os representantes do governo – e a situações que são apenas descritas, não vistas. Por exemplo, em determinado ponto da história, Leeward parte em uma longa viagem ao redor do mundo e, quando ela acaba, Snyder faz questão de mostrar algumas coisas que aconteceram nesse perigoso percurso. E como ele escolhe fazer isso? Flashback, você certamente diria. Mas não é isso que vemos. Em uma mídia eminentemente visual como os quadrinhos (lembrem-se dos mundos apenas visuais – sem ou quase sem falas – criados por Moebius), Snyder aposta em uma estrutura de “meu diário”, com Leeward contando para uma câmera robótica o que fez. E, pior, em não mais do que meia página. É como se Tolkien empregasse anos de estudos para criar a Terra-Média, todos os seus mitos e criaturas e, no lugar de escrever o que escreveu, decidisse fazer um conto de cinco ou dez páginas.

E, quando a convergência da Parte Um com a Parte Dois finalmente acontece, ela é muito mais um anti-clímax do que um final propriamente dito. Em apenas uma leitura, é até difícil entender o que acontece, tamanha é a velocidade, mas, em uma segunda e até terceira leituras, o plano de Snyder fica mais claro e, exatamente por isso, mais insosso. Fica aquela pergunta: “é só isso?”. Sim, é só isso. Existe apenas uma vantagem nessa corrida louca de Snyder para contar sua história em dez números: pelo menos ele não levou 50 para chegar a um final tão bobo e aleatório quanto esse.

Mas se eu pintei um quadro negro em relação ao roteiro, o mesmo não se pode dizer do trabalho de Sean Muphy na arte. Aliás, muito pelo contrário.

Murphy, autor do excelente Punk Rock Jesus e que já fez parceria com Snyder em um minissérie de Vampiro Americano, usa sua criatividade para colocar os dois fantásticos mundos criados por Snyder nas páginas de O Despertar. Seu design de criaturas, especialmente o “sereio”, e de tecnologia, com especial destaque para a base submarina na Parte Um e para literalmente tudo na Parte Dois, deslumbra e prende o leitor, que quererá esmiuçar cada detalhe da arte que não se esquiva de apresentar detalhes sem perder o traço rústico característico do autor. Apesar de os personagens humanos não serem muito desenvolvidos no lado do roteiro, Murphy consegue quase compensar essa falta incutindo em cada um deles características únicas que passam visualmente aos leitores uma história pregressa mais trabalhada.

O desenhista também é muito bem sucedido na distribuição de seus quadros, utilizando o meio em favor da história. Mesmo quando a ação é non-stop, o leitor não se perde nos acontecimentos, pois Murphy domina a progressão narrativa sem maiores percalços, equilibrando o número de quadros por página, de splash pages e, também, pulverizando a obra com sensacionais “sangramentos”, como o momento em que Leeward cai da nave do governo mais para o final da história. Há também, graças as cores de Matt Hollingsworth, ótimo uso do preto, criando efeitos de solidão e desespero que merecem nota, especialmente algumas páginas chapadas integralmente nessa cor (ou será que deveria dizer “não-cor”?), com apenas um detalhe em outras cores para chocar e destacar ao mesmo tempo.

O Despertar é lindo de se ver, mas, apesar de conter ideias muito boas, complicado de se ler. É um passeio à jato por um universo que deve ser fascinante, mas que o leitor não consegue exatamente ter certeza disso. Infelizmente, é uma diversão efêmera que definitivamente não esta à altura da bibliografia de Scott Snyder.

O Despertar (The Wake, EUA – 2013/4)
Contendo: The Wake #1 a 10
Roteiro: Scott Snyder
Arte: Sean Murphy
Cores: Matt Hollingsworth
Letras (original): Jared K. Fletcher
Letras (edição nacional): Daniel de Rosa
Tradução:
 Érico Assis
Editora (original): Vertigo Comics (publicado entre maio de 2013 e julho de 2014
Editora (no Brasil): Panini Comics (publicado em dois encadernados, em fevereiro e abril de 2015)

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