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Crítica | O Desprezo (1963)

por Leonardo Campos
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Adentrar na zona de produção do cineasta francês Jean-Luc Godard é um acontecimento incomum na vida de qualquer cinéfilo, crítico ou espectador comum. Isso não significa que a experiência seja necessariamente positiva, pois a soberba deste agitador cultural que marcou a história da nouvelle vague nos mostra que justaposto ao interesse de quebrar tradições e ser revolucionário, indo de encontro aos esquemas de produção do sistema industrial, crítica declaradamente aberta ao modo de operação hollywoodiano, Godard também abriu precedentes para um tipo de cinema muitas vezes hermético, bastante fechado em si, longe de ser misterioso ou enigmático e aguçar a curiosidade e mais próximo do deleite de expor algo que seja compreendido por poucos. Ou por seus pares. Isso é um fato. Parece muito o mundo acadêmico, espaço de excelentes desempenhos científicos, mas também palco de muitas produções que sacolejam egos e mantém a fixidez das estruturas de poder de algumas pessoas que sequer pretendem largar o osso da tradição e repensar as suas ideias já mofadas. Pensar Godard me remete ao hermetismo desses campos de produção intelectual, algo que acredito, seja mais da crítica que o reflete e menos dele próprio, um homem de formação marxista.

Sigamos. O Desprezo é tido como um filme complexo, difícil, onde nada acontece e todas são as possibilidades. Sempre soube disso em debates sobre a produção. Quieto, em minha postura observadora, contemplava com um riso pulsante, as colocações orgásticas de muita gente que me fez acreditar ser impossível entreter-se diante desta narrativa sobre um tema de meu agrado, isto é, a representação metalinguística dos bastidores de uma produção cinematográfica, com foco na figura do roteirista. Eu já havia experienciado o tema com outras narrativas mais comerciais e ampliei a relação com 8 ½, do italiano Fellini, um filme apontado como um conteúdo de complexidade semelhante ou maior, mas que foi enfrentado sem grandes dificuldades. Em paralelo ao seu pastiche musical Nine, de Rob Marshall, o “clássico” sobre um diretor autor com bloqueio criativo se tornou a minha maior referência dentro deste segmento. O Desprezo foi engavetado, guardado para uma possível experiência futura. Não sei, talvez sejam os anos de estudos e avanços intelectuais quase dez anos depois desses acontecimentos mencionados, mas conferir a narrativa recentemente me permitiu um olhar além, principalmente por já adentrado e até produzido textos sobre outros filmes de Godard, dentre eles, Alphaville, outro marco.

O olhar além que relato é a observação acerca dos desdobramentos narrativos de O Desprezo, o mais linear dos filmes de Godard, cineasta que mesmo diante de filmes ruins, consegue ser um acontecimento midiático, com menor proporção que os flashes da cultura das celebridades, mas ainda assim, um motivo para debates calorosos no campo da cultura. Diretor e escritor de seu filme, o cineasta emprega alguns elementos imbricados na produção e torna a sua narrativa impermeável diante da sedutora estrutura padrão que faz brilhar os olhos das massas. Há um interesse em blindar a história do casal que se encontra diante de uma crise no casamento, bem no período de desenvolvimento de uma conflituosa tradução intersemiótica da Odisseia, de Homero. Com traços de Viagem a Itália, trama com o casal que se despreza o tempo inteiro, o francês traz Raoul Coutard para a direção de fotografia, George Deleure para a condução musical e Ágnes Giullemot para montar o seu filme, inspirado no romance Le Mepris, de Alberto Moravia. Com essa equipe, O Desprezo apresenta longos planos e uma paleta contrastante entre a sua narrativa, a que acompanhamos, e o “filme dentro do filme”, num uso expressivo do vermelho, azul, amarelo e branco, brilhantemente em consonância, bem como uma textura musical firme, de acordo com as imagens, editadas delicadamente, sem excesso de cortes para ampliar o ritmo.

Filmado em Cinemascope, editado em cores pelo laboratório GTC, O Desprezo é uma trama de 102 minutos sobre Paul Javal (Michel Piccoli), um roteirista que segue para Roma com a missão de adaptar o poema homérico, já em andamento com Fritz Lang, cineasta que aqui, faz uma participação luxuosa. Ele é casado com Camille (Brigitte Bardot), uma atriz que aparentemente se encontra não apenas numa crise conjugal, mas consigo mesma, haja vista a famosa cena da abertura, com a personagem nua a questionar se o parceiro gosta dessa e daquela parte de seu corpo jovial e vibrante. É uma passagem com debate incrível sobre erotismo, beleza, paixão, etc. E Godard também deixa uma lição para as gerações vindouras, sobre como ostentar a nudez feminina sem vulgarizar as suas imagens. Sobre crise, não apenas ela está em confusão, mas o cinema italiano também, constantemente mencionado nos diálogos como um campo de realização ameaçado. Diante do exposto, enquanto um filme se constrói, um casamento se desfaz. É após uma carona com Jerry Prokosch (Jack Palance) que a personagem de Bardot desiste de vez do casamento falido para viver uma aventura plena com o produtor do filme. Ela o despreza em demasia e enquanto expõe os seus sentimentos, Godard presta a sua homenagem ao cinema, a sua usina dos sonhos. É uma abordagem ácida, mas há demonstração afetiva.

Na cena de despedida da ponta de Fritz Lang, podemos observar a fachada de um estúdio, com cartazes de diversos clássicos, dentre eles, Psicose, de Alfred Hitchcock, todos manchados e rasurados, vitimados pela ação do tempo. Com seu tom profético, o cineasta parece traçar o destino dos personagens e do próprio cinema enquanto arte. Os planos fechados nas estátuas dos deuses selam o destino das figuras que circulam em cena. É até bem narrativo e convencional. Na discussão sobre a Odisseia e seu processo de tradução da estrutura poética para a linguagem cinematográfica, muda-se muitos elementos, inclusive uma interpretação livre sobre a infidelidade de Penélope, a mulher de Odisseu, há anos esperando seu amado retornar da Guerra de Troia. Diferente do destino heroico homérico, os personagens de O Desprezo não encontram a plenitude que tanto almejam. Entre uma carta de despedida e um fatídico acidente de carro, a trajetória dos protagonistas é selada, sem necessariamente ter muitos dados para explicação e resolução. Sem as amarras narrativas do cinema clássico que ainda perdura no contemporâneo, isto é, o padrão começo, meio e fim devidamente entrelaçados, com flashbacks explicativos, o filme de Godard “despreza” convenções num grau mais geral, mas se observarmos atentamente, as executa, de seu jeito peculiar, mas sem o total abandono.

Como já é sabido para quem tem alguma leitura de história do cinema, Jean-Luc Godard possui o estilo de filme para não ser entendido completamente. Se isso é certo ou errado, caros leitores, não podemos mensurar, pois se há uma coisa no campo da arte que deve ser irretocável é o tópico protagonista do exercício criativo de cada artista: a subjetividade. Pioneiro da nouvelle vague, o cineasta assumiu um estilo corajoso de produção, criticou o apelo industrial ao cânone, em detrimento da experimentação, cortou laços até mesmo com François Truffaut, uma daquelas amizades que acreditamos ser para a vida toda, tamanha a paixão de ambos pelo cinema. Inspirador para muitos cineastas contemporâneos, Godard trouxe para O Desprezo, os sentimentos antiquados do romance de Moravia, traduzidos para os esquemas fervilhantes da modernidade. Ele pega do livro os sentimentos dos personagens, mas deixa a estrutura literária por lá, sem depender da história que adapta para permitir que seu filme se construa. É um forte processo de transformação, numa busca por autoria. Na abertura da edição lançada pela Universal e distribuída em DVD, o historiador e crítico Leonardo Campos diz que André Bazin afirmou que “o cinema nos mostra um mundo que cabe em nossos desejos”. Ao citar o ensaísta e teórico, ele reforça que O Desprezo é uma história desse mundo.

O Desprezo (Le Mépris) – França, 1963
Direção: Jean-Luc Godard
Roteiro: Jean-Luc Godard
Elenco: Brigitte Bardot, Fritz Lang, Giorgia Moll, Jack Palance, Jean-Luc Godard, Michel Piccoli
Duração: 102 min.

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