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Crítica | O Diário do Pescador

por Laisa Lima
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O boato espalhado por Compramos Um Zoológico (Cameron Crowe, 2011) de que “tudo que precisamos é de 20 segundos de uma coragem insana” pode ser desmentido por quem teve bem mais tempo de uma bravura contínua. Não foi fácil para Oskar Schindler, de A Lista de Schindler (1993), se dispor, com plena consciência, de sua vida para a salvação de milhares de judeus. E nem para Forrest, do famoso Forrest Gump (1994), que teve na manutenção de seu otimismo um dos atos mais corajosos que um ser humano pode realizar. Se aproximando um pouco mais do filme que aqui será discutido, Parvana, em A Ganha-Pão (2017) foi igualmente um símbolo de valentia ao disfarçar-se de menino em prol de seu maior bem: a família. Com a mesma idealização de alcance da igualdade entre ambos os sexos via uma criança como estimulante principal, Diário do Pescador (2020) coloca Ekah (Faith Fadel) na posição de contestadora do porquê uma criança, um professor, um livro e um lápis não podem mudar o mundo.

Apesar do título do filme mencionar um pescador, apenas sua área de ofício é evidencialmente mais explorada. Ekah e seu pai, então, vivem da pesca e são bem sucedidos no ramo. Contudo, Ekah se fascina, devido a uma foto com dizeres da ativista Malala Yousafzai, pela educação. Em sua tentativa de driblar os preconceitos impregnados no povo de sua vila, a personagem assiste, por uma fresta na parede da sala, as aulas na escola local. Entretanto, os preceitos antiquados de sua região dificultam a empreitada da menina, fazendo com que seu sonho se torne mais que um desafio. Tendo a mãe de Ekah como exemplo dos efeitos do conhecimento em uma mulher, o instinto paternal de Solomon (Kang Quintus) não sobrepõe o medo da transformação que o estudo pode dar à filha, dificultando não só o caminho de Ekah como estudante, mas também como pessoa. 

Ambientada em Camarões, no continente africano, a história parte do princípio de que lá poucos não são limitados em relação ao pensamento. Envolta por uma pobreza visível, onde a sujeira toma o chão e a tecnologia passa longe, a localidade dita a restrição de ideias acerca da cultura ali manifestada, sendo ela tão antiquada quanto cruel. Se desvencilhar do que já está enraizado e tornar habitual algo que em muitos lugares não se separa das necessidades básicas de um indivíduo, não se faz da noite para o dia quando se trata de uma única peça, a princípio, nesta luta. Logo, Ekah sofre consequências que já eram esperadas por quem observa à sua volta e possui o entendimento de que a menina está rompendo com pareceres antigos. A criação de toda uma cercania opressora exalta e engrandece a determinação da menina, que, por mais forçados que alguns castigos pareçam ser para continuidade ao ritmo de injustiças da obra, se mantém firme na maior parte do filme.

A união de temáticas pertinentes mas distantes de uma parcela da população mundial, é válida no quesito de ser uma amostra da realidade dos que vivem sem os benefícios da modernidade, sustentando-se no que já foi rompido há anos por uma civilização que evoluiu – ou está tentando evoluir – sua concepção no que diz respeito ao papel feminino e aos seus direitos enquanto pessoas equiparadas a todas as outras. Ekah, no auge de seus 12 anos, tem esta amplitude visionária, o que é revelado no filme por meio de sua persistência incansável, mesmo temendo um possível confronto com seu pai. Por mais que alguns personagens se percam em suas próprias personalidades, como o tio da jovem e sua repentina vilania, quase todos concordam com as noções semeadas no povoado, apenas retirando a professora Bihbih (Damarise Ndamo). Pautado em cima de ações absurdas contra Ekah e contra sua infância, a narrativa põe em um pedestal a indignação natural vinda do público, conduzindo a narrativa à base de cenas gráficas e nada delicadas, condensando todo o nível de perversidade que uma pessoa pode chegar. 

Todavia, o potencial da fonte e de sua influência – a consequência nos demais da história da jovem militante paquistanesa e vencedora do Prêmio Nobel, Malala -, poderia ser melhor aproveitado se tivesse a estética como seu aliado. Em vez disso, as imagens dirigidas por Enah Johnscott conseguem falar por si só e todo esse bom material passa por uma plasticidade que não aparenta ter um norte certo, ressaltando os erros de continuidade e de posicionamento dos atores, além da má elaboração da luminosidade, por vezes distinta na mudança de um quadro para outro sem uma razão ostensiva. Outro grande defeito pode ser culpa da trilha sonora, com uma mistura de melodias africanas e músicas letradas com um viés quase pop. Pela falta de manejo e domínio sob as cenas, recursos desconexos – como o uso excessivo e exaustivo das canções que não cessão e dos diálogos incoerentes -, não geram o tom nem a sensação que determinados momentos deveriam ter, anulando uma parte considerável da emoção do público. O desaproveitamento dos recursos cinematográficos de forma consciente diminui a força que o enredo deveria ter, tornando-o insuficiente para considerá-lo como uma crítica mais convincente. 

O Diário do Pescador foi feito para chocar. Com uma premissa teoricamente simples, as adversidades vem do desenrolar de um único interesse: o de Ekah para com o estudo. Por intermédio do longa-metragem, é possível conhecer um pouco de uma vida longínqua, onde a ignorância reina, assim como atitudes bárbaras. Porém, isto é tudo o que o filme tem a mostrar. Devido a nenhum recurso visual mais interessante e nenhuma inventividade na trama – E o cinema se forma pela junção dos dois -, a obra se faz promissora, mas enquadrada naquelas que a deficiência vem da inexperiência com os artifícios que conseguem fazer com que um filme alcance um outro patamar. As boas interpretações, principalmente de Faith Fidel, auxiliam na salvação de alguns pontos, e até bonitas imagens, como a de Ekah no deque com o sol atrás, é um dos positivos. Portanto, a obra formata um discurso em oposição a assuntos como violência e exploração infantil, ressaltando o poder da educação e revelando o quanto a mesma afeta quem a não tem, tais quais os moradores da vila. Pretensiosamente, o filme busca ser um manifesto. Legítimo, mas, infelizmente, mal conduzido. 

O Diário do Pescador (The Fisherman’s Diary – Camarões, 2020)
Direção: Enah Johnscott
Roteiro: Enah Johnscott
Elenco: Faith Fidel, Damarise Ndamo, Cosson Chinopoh, Onyama Laura, Prince Sube Mayorchu, Godwill Neba, Daphne Nije, Ramsey Nouah, Kang Quintus
Duração: 153 min.

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